EM NOME DO TERÇO
À lógica do teu coração
Tanto cabe uma poesia
Quanto cabe uma oração
Em nome da filosofia.
Por isso, canto o pensar
Heidegger-franciscano:
Onde houver logos
Que eu leve emoção:
Onde houver sonho
Que eu leve realização
Onde houver linguagem
A confabulação
Entre dois corações
Wittegensteiniano.
1ª PARTE
SOMOS MEGANHAS,
TODOS SAMANGOS
“... sempre seja Deus
Verdadeiro,
e todo homem mentiroso;
como está escrito...”
(Rom. 3-4)
Zero zero zero -
ABSOLUTAMENTE SONHO
Antes do antes de minha própria concepção
Sonho
Minha vida uterina
Sonho
Minha viva realidade
Puramente Sonho!
Antes do antes existir
Sonho
Pretérito Agora Vindouro
Sonho
O futuro do meu além-infinito
Sonho
O meu fenecer
Eternamente Sonho
Aqui Há-de ser
A minha mais pura realidade sonhada
Em ser o que nunca sonhei ser
De vera Em sonho
E que nunca fui antes do nascer
Nem depois do fenecer
Por tudo não passar do Ser sonho
E de ser sonho.
Os nossos filhos
Sonhos nossos
O filho meu
Fruto dos Eus sonhos
Concebido em meu sonho de Ser
Um eterno Sonho de mim mesmo
E das coisas que senti e hei-de sentir
Não sonhando!
Mas sendo Absolutamente Sonho!
Zero zero um - SINOPSE
Sonhar
estas idéias oníricas comigo, amigos leitores, amigas leitoras atentas ou
desatentas, certamente, os levam a se identificar com traços de passagens ou de
personagens desta hi(e)stória engraçada; digo engraçada porque quase nada levo
a sério na vida, principalmente a de quem vive um duradouro sono de trinta
anos.
Estou a
dormir, como vês. Sonho esta estória, cuja hibernação é de trinta longuíssimos
anos; até penso que não vou sair deste torpor. Saio. E tudo é como se
renascesse das cinzas. Sou eu, então, o homem-fênix? Mas não vou me arrepender
se continuar a ursar hibernantemente ou hibernamente por demasiado tempo, ou
quem sabe até a minha finitude existencial!
Sinta
cara leitora minha e caro leitor meu, o sonho começou. Sonhe sempre dormindo;
sonhar acordado corre risco de se expor ao ridículo; por isso, não aconselho
sonhar assim, pode se dá nos piores dos pesadelos, e qualquer semelhança com o
real é mero paradoxo.
Se sua
identificação comigo for via o fictício, tenho o enorme prazer em aplaudi-la(o)
de pé, mas se for via semelhança ao real, muito gostaria de fazer o mesmo,
porém não posso, pois estou de mãos atadas, pelo lapso que cometo de fazer
acreditarem nas minhas mentíforas imagéticas de sonhador.
Pois
bem, quem nunca mentiu? Sempre quis mentir, assim como é a natureza de toda
criança; porém, a mentira tem pernas curtas, e a minha educação religiosa não
me permite tal ousadia. O monstro do pecado me assusta; menos o batão-de-fogo,
o João Beca, das estórias de Trancoso; estas não passam de lenda, ou coisas da
fértil imaginação de minha mãe, eu não tenho pingo de medo. Por isso, sou uma criança
amedrontada a temer coisas divinas. E isto, com toda certeza, é muito bom para
mim; serve também, pra meu crescimento... Pois, é muito feio uma criança
mentir.
Entro na
segunda adolescência, descubro que faço tudo errado, quero acertar as arestas.
Estou na fase de lobo faminto aos quarenta e tantos anos; sinto-me em débito
comigo mesmo por deixar o tempo passar; obriga-me a fantasia de outrora em
resgatar algo no presente.
Eis que
sou o ápice do meu sonho e devaneio, sou nefelibata; sou homem-metáfora; vivo
minhas fantasias e mentiras de menino como um contador de estórias. Não, não
mudei de credo, caro leitor, se assim o pensa; continuo temente a Deus, e a
ninguém mais; mas agora, minha mentira não tem pernas curtas, mais não.
Cortei-as. Cresci. Acredite, é verdade! Toda mentira tem fundo de ficção, como
todo sonho tem de fantástico e de surrealismo; ou senão, toda verdade tem fundo
de brincadeira e vice-versa, não é isso?!
Brinco
com o irreal, o verossímil, a mentífora; vivo o fantástico, mas faço de conta
que não estou no país da Alice, ou, em As Mil e uma Noites da belíssima
Sherazade a ouvir suas eternas estórias.
Navego no mundo das minhas reais fantasias, dos meus reais desejos de
gente grande, exerço o livre arbítrio e acredito no sucesso na vida de todos;
dos que nascem em berço e dos que nascem em rede; pois, todos, sem regra para
excetuar, alcançam o merecido sucesso um dia; nem que seja como eu agora, em
sonho, ou, quem sabe, já já no inexorável crepúsculo de moribundo.
Zero zero dois – FÉ E
METÁFORA
Nasço em
berço, frequento boas escolas; tenho bons mestres, leio bons livros, viajo o
mundo inteiro e terei destino certo, Havard; nasço em rede, e também terei
destino certo o de viver sem tino nem hino; porém, insisto redundantemente em
dizer que a minha escola é a de todos; tem professores medíocres; leio livro
indicado pela escola, e, se algum de nós se sobressai o convencional é que
pairou, à nossa abençoada inteligência, o espírito de autodidata, mas a escola o desencoraja, não
quer perder tempo com a diferença e o repreende em cima da bucha; eis a
paupérrima autoridade de quem leciona: Menino, não fique perdendo tempo lendo
livros inúteis. Não leva a lugar nenhum! A sua obrigação é fazer o dever da
escola e as tarefas para casa, entende!
Às
vezes, um autoritarismo versus introspecção perene, porque em sala, não se faz
pergunta, questionamento sequer, ante a autoridade da qual tudo sabe tudo
entende, tudo manda. E adeus sábia filosofia infantil do que é isso? O que é
aquilo? Por que isso? Por que aquilo? Mas não é só disso que depende o
insucesso de muitos e o sucesso de uma minoria. Não, absolutamente. Ninguém
chaga a lugar nenhum se não é a fé convertida em esperança e afã, que os guia.
Sonhos e desejos são movidos única e exclusivamente pela fé; com fé, berços e
redes conseguem o sucesso desejado; mas, infelizmente só os das redes acreditam
nela piamente e utilizam tal poder verdadeiramente. A religiosidade da gente é
tamanha, acredite ou não, leitor; que se chega a mover muitos obstáculos até
mesmo os mais abstratos, e tudo se dar como se fosse divina providência. Por
isso, Deus escreve certo por todas as linhas.
E, eu,
Ozodyrak Rid Narum, menino sambundo de sítio, no embalo da rede de pano, sonho;
e, trinta anos após, saio Especialíssimo em Infantaria. Posso, então, garantir
mediocremente o meu sucesso nas linhas da Milícia como Sargento. Eu, como muitos, sou sonhador; mas que tenho
entre pouquíssimos da nossa espécie o direito exclusivo de SONHAR; isto é,
sonhar por trinta ininterruptos longos anos, com o único perfil de personagem
hibernante. Sem via de dúvida, um fato mirificamente insólito, inusitado e
inovador no universo da literatura? Até que pode ser, mas não há de se dar
crédito a tal e descabida pretensão, não se pode considerar literatura o que se
escreve em uma língua ilícita (?) à norma culta em que clássico machadiano
jamais o é, o que se escreve genuinamente em brasilês. E o pior, eu não sei ser
outra coisa, mormente, quando estou em sonho, a escrever.
Por
favor, leitora, descarte tudo que digo, pura hipocrisia de quem está delirando
e induzido pelo sonho; onde já se viu escrever em brasilês se o que sonho é
vivido por pessoas de sete países ou mais, mesmo sem serem brasileiros ou
portugueses; me desculpe, tudo não passa de reflexo ou complexo de insegurança
de quem nasce em rede de pano e não em
berço de ouro; o gentil leitor há de perceber a minha insensatez e me perdoará,
pois acredito no teor de sua sapiência, de sua intelectualidade e me dará uma
chance para ver se consigo epilogar estas minhas reminiscências. E com a sua
licença aqui sonho eu.
E assim,
trinta anos de um sonho maravilhoso dessa literal criatura que, para vocês
sonho agora.
Tudo
muito bem, só enquanto sonho; desperto. Tenho o mais cruel dos pesadelos, tenho
que encarar a realidade pura e simples de ter que sobreviver da minha mísera
pecúnia como Infante. Mas, tudo tem de ser assim. Eu estou marcado; a minha
infância é cúmplice, premedita a sina, tudo me diz que sou Infantaria. Gosto de
marchar, de me vestir de soldado; meu pai é o comandante, nosso cabelo é padrão
e a minha mãe, quando a gente atrasa um pouco, grita: Marcha, menino! E me bate no peito uma saudade da molesta do
meu clássico e irreversível sonho de dois anos na Especialíssima, e, da minha
infância querida marchando e cantando – Marcha soldado / Cabeça de papel / Se
não Marchar direito / Fica preso no quartel – ao meu premeditado destino de
sonhador.
Zero zero três - O CANTO
DO GALO NO GALO
Entre o
cantar do galo e os primeiros raios do sol, como num sonho interminável,
anuncio a alvorada de cada dia. São as minhas latas que despertam o povo do
Galo; e todos me agradecem por matar a sua sede?...
Isso é
hora menino! Nem ouvi o galo ainda. E o sol?
Sou o
galo e o sol desse povarejo Dona Leonir.
Menino
danado! Queria ter um filho assim.
Me chama
de Ozo. Uma mania da nossa gente que vive de barriga cheia de palavras? Estão
sempre a diminuir o nome; encurtam o nome, mas falam mais que o homem da cobra;
ela não suporta me chamar Ozodyrak; é sempre Ozo. José é Zé; Manoel, Mané. E aí
vai. É Ozo prá lá, Ozo prá cá. E as minhas canelas finas de sibite a subir e a
descer ladeira. É o pote de dona Leonir; a quartinha de dona Marifele; a jarra
de dona Lebasir; o panelão da minha mãe. E este é o fortificante para eu ficar
parrudo; e ir pro Exército ser homem; o desejo maior do meu pai.
Ainda muito pequeno
Assumi obrigação
Assim como gente grande
Que eleva a nação
Botava água pro povo
Eu, moleque muito novo
Já batia o meu cartão.
Zero zero quatro - O DIA
DE FEIRA NO ALECRIM
É
sábado, dia de feira no Alecrim, dois quilômetros para chegar à parada, bem
pertinho da ponte do Potengi, em Igapó. Logo cedo minha mãe D. Ycara sai para
fazer feira. A caminhada é longa e demorada, as comadres são muitas, umas dez!
Como vai
dona Ycara? Eu não ando muito bem, comadre, me apareceu umas dores...
Mãe,
vamos, vai ficar tarde; vamos perder o ônibus!
Cala
boca, menino! Não está vendo que estou conversando!
É com a
comadre Zeny, depois a comadre Nary; em seguida, Seny, Mady... E o que era
cedo, agora ficou tarde. Não se perde o transporte, mas a lotação é digna do
nome, vem lotada, superlotada mesmo. Cada Sábado leva um de nós com ela, mas
antes, nos enche de cuidados e recomendações:
Não vão
brigar, hein! Não quero ouvir chafurdo quando voltar; se não, vai levar
lamborada todo mundo; não escapa ninguém!
E quem
disse que a gente ouve o que ela fala? Entra num buraco de ouvido e sai noutro.
Fazemos ouvido de mercador. É só ela dá às costas, a bagunça começa,
juntamente, a concorrência desleal. Os maiores, como sempre, sobressaem aos
pequenos; na força, na experiência, na imaginação. Eu estou entre os grandes e
tiro as minhas vantagens.
Mas
tarde, no caminho, nossa mãe com sentido materno e ajuda dos vizinhos já sabe o
que a gente apronta. Nos matamos dentro de casa; o berreiro entre nós acusa
mais ainda as nossas astúcias de moleques; brigamos feitos cachorros por nada.
Mas, quando pressentimos mãe chegar, um silêncio de cemitério, de culpa no
cartório, nos denuncia que nada anda bem; não se ver nenhuma criança,
literalmente; a gente desaparece que nem rato das barbas de gato; nós maiores,
nos escondemos em tocas feitas por nós dentro de casa; com os olhos fechados na
escuridão do lugar, é como se nunca ninguém visse ou achasse a gente.
Dona
Ycara cansada, suada, nervosa a nos procurar, contrariada de raiva. E o
pequeno, aos berros, nos delata, mas leva os seus muxiquões também.
Mãããêê!...
Did subiu a parede e pegou o miaeiro.
É o
mealheiro feito de coco seco, umas pratas que mãe junta; vende din-din para
ajudar na compra de roupinhas para os pequenos. O cofrezinho no alto da parede
escapole das mãos de Did, e cai no quengo fazendo um calombo bem grande em Yli
e se espatifa no chão. As pratas denunciam a nossa desgraça; a raiva de mãe
sobe para cabeça; quer nos achar a qualquer preço para pagar o que nos
prometeu. Com os relhos da máquina de costurar em punho, grita:
Onde
estão aqueles daniscos! Apareçam seus... mas que astúcia! Sai já debaixo dessa
cama se não vai ser pior! É Dad.
Onde
estão os outros?
Neny
está dentro do armário.
E Neny:
Did está na outra cama.
E
Ozodyrak? Onde está ele?
E
ninguém a responder, porque ninguém sabe onde eu me escondo; mas tremo de medo
debaixo da mala, o coração a sair pela boca; eu estou dentro do quarto da minha
mãe, este é o medo. As horas se passam e eu sem aparecer.
No
quarto, já tarde da noite, a lamparina me denuncia; a minha mãe de cabeça fria
não conta história; me paga com as mesmas moedas de Dad, de Did e de Neny; e eu
fico com saudade do coco, cujas pratas me fazem pensar no “Pai me dê cem!”;
porém, isto não dura por muito tempo mais não; eu estou crescendo; aos quinze
anos decido botar água, aí, começo a juntar as minhas primeiras pratas e ter o
meu próprio mealheiro. Daí, eu não mais ouço de meu pai o trocadilho “Sem
jeito!” como resposta do: “pai me dê cem!”.
Zero zero cinco - A
MINHA PRIMEIRA PRATINHA
Não
recebo salário de gente grande, mas já economizo em formas de moedinhas, ou,
como se diz, “as pratinhas”. Não tenho com que gastar, sempre sobra mais da
metade. Como brote seco com cocada, pão doce, francês na casa de Severy. Não
guardo em banco não, os frascos de vidro de brilhantina da minha mãe servem de
cofre, meu mealheiro; guardo as pratinhas de 10, 20 e 50 centavos de cruzeiros,
da água que boto para vizinhos e parentes, em Igapó; moro à margem da linha
férrea. Cada galão de água custa 50 centavos, dependendo do dia, coloco até dez
ou doze galões-dia, ganho de cinco a seis cruzeiros por quatro horas de
trabalho. Semanalmente, CR$ 24.00, e, mensal, CR$ 96.00. Pra mim, é muito
dinheiro, consigo fazer boas economias. Com esta mixaria compro meu primeiro
tênis, é pequeno para o meu primo, porém, o que falta nele se excede no meu,
mas fico feliz por calçar o meu primeiro tênis bege de listas marrons por
muitos e muitos São João, São Pedro e 25 de dezembro. A minha economia também
faz despertar olhos interesseiros, como é o caso do marido de minha prima, que
sabendo disso, fala-me em empréstimo. Posso me tornar um agiota, mas não tenho
dom pro negócio. Empresto, mas não me lembro quanto. Se me deve ou se me paga,
não faço questão. Porém, sei que esse senhor, não consegue ter nada na vida,
nem a própria casa. Vive a mercê de um e de outro, mormente, na época de
eleição, enrolando o povo. Contudo, o
preço dessas primeiras economias vale pelo meu primeiro e único salário que
recebo até hoje, o qual define minha ida pra FAB.
Zero zero seis - A
PRIMEIRA DISPUTA
Eu
franzino, menino de sítio, tomo banho de rio de maré, subo mangueira,
pitombeira, azeitoneira, com a mesma habilidade de quem descobre os primeiros
sinais de homem; com músculo e pentelhos na intimidade de baixo a explorar com
admiração; e o coração a registrar os primeiros desejos pelo sexo oposto.
Linday é quem primeiro desflora o meu coração; eu a vejo com a trouxa de roupas
descendo para o rio; o coração cai num baticum de fazer dó, mas é tão bom, me
sinto leve como um beija-flor e saio correndo, só para ver aquelas pernas
arreganhadas, sobre a tábua no Rio de pai Zé.
Nelay é a minha professora de sexo: na escuridão das mangueiras,
formigas e vaga-lumes compartilham do nosso motel calango. Outra Linday expunha
os seus peitos grandes, num estripitese particular para adolescente. E Leidy. Ah, a meiga e doce Leidy esta é quem
desvirgina de vera os meus sentimentos, com o primeiro beijo real. Somos
namorados. Este nasce de uma disputa acirrada com Luy, primo meu; queremos reconquistar
o coração da mesma mulher, Leidy, que já é veterana, fora noiva de um colega de
primário meu. Luy se apaixona por Leidy; e eu já a cobiço e a desejo
ardentemente tê-la em meus braços. A praça é a linha de trem defronte à casa de
meu tio Abluy, pai de Luy; falamos de nossas intenções pelas meninas da rua,
exceto de Leidy; Luy e eu desejamos a mesma menina, mas não tocamos no nome
dela; desconhecemos as nossas mesmas intenções? Não, exatamente. Leidy,
obviamente, sabe de tudo e estuda uma decisão a seu modo. Morena, baixinha de
cabelos e olhos pretos e dentes branquinhos a força da prótese, aos vinte anos
de idade. Tem olhar tímido e voz mansa. Tudo isso eu observo nela.
Às
tardes, quando venho do Instituto Municipal João XXIII, o barraco de dona
Marydokar é parada certa. E lá vem a baixinha correndo, toda sorridente para me
atender. O tíquete vendido ao homem do picolé serve de lanche na escola e para
aquele momento fantástico, tramado por dois corações apaixonados. Sem palavras,
só olhar e coração a palpitar; Leidy com as suas mãos pequenas embrulha o meu
presente; eu pago e pego em suas mãos tímidas como as minhas e saio linha a
fora a comer o meu pão francês; tão feliz, que a mangueira mal-assombrada não
me assusta mais. E, dias depois, a mangueira do KM 8, não passa de estórias de Trancoso
como as que minha mãe contava. Eu ganho a disputa com Luy, e Leidy me
transforma num rapaz de coragem. Agora, meu pai não vem mais me pegar; eu posso
subir e descer a linha a qualquer hora do dia ou da noite, nada de
homem-sem-cabeça, nem de moita andando sozinha na mangueira do 8. Mas, para o meu pai, aquele meu namoro periga
mais que as assombrações da mangueira, e, com muito jeito, de vez em vez,
diz-me: Cuidado rapaz! Não vai se envolver demais, hein! É como se me dissesse:
“não bula com a moça, se não vai casar.”
Zero zero sete - AS DUAS
ESCOLAS
Não me
lembro muito das coisas, mormente, quando estou a dormir gostosamente; mas
lembro da adolescência sem o primeiro beijo; talvez, a primeira intenção de
beijar apenas. Aos dezessete, distante desse sonho, beijo seguramente com a
mesma segurança de final de Científico.
É tempo de alistamento; uma obrigação prazerosa pela falta de opção.
Emprego, trabalho a escassear desde sempre, mas no meu íntimo de menino, a
farda sempre fantasia o desejo por desconhecer o fardo de todo ofício de homem.
E Leidy, a virgem dos meus sentimentos, reza, ora e faz promessa; quer me ver,
com ajuda de Padrinho Cícero, dentro de um fardão azul; faz viagem para o
Juazeiro do Norte, me dá Oração de Nossa Senhora dos Impossíveis, faz promessa;
e tudo isso vale. Minha professora de amor, eu a amo pela sua fé e pelo seu
primeiro beijo. E tudo se dá da sua escola, à escola Especialíssima, e nunca
mais nos vimos... Como os primeiros dias.
Zero zero oito - ÚLTIMO
LUGAR FELIZ
Quanta
inocência se reveste o meu coração infantil. Quanta ausência de preconceitos é
o meu mundo. Não chamo nome feio; substituo-o com criativa sabedoria de
criança. Entre nós irmãos, burra e podre, substituem todos os nomes feios do
mundo. Criança, ainda, eu peço ao Coração de Jesus que nunca me deixe reprovar;
quanta fé existe num coração infantil, Jesus nunca se esquece. Mamãe até que
brinca certa vez comigo, que choro de infelicidade; mas ela me pede desculpas
pela brincadeira de mau gosto e me diz:
Você
chora de felicidade, meu filho! Você tá aprovado.
Coisa de
mãe mesmo. É o primário na ocasião. No ginásio, admiro os que estão à minha
frente, e desejo chegar lá, a toda inocência.
Na 5a série, tenho o privilégio de ficar em recuperação em todas as matérias,
inclusive em Francês; o único a ficar numa turma de 40 alunos; tudo para mim é
tão normal quanto não chamar nome; a recuperação pra mim é parte da rotina do
meu Q.I., todos sabem disso, exceto eu, depois aprendo; mas o tempo me ensina
que essa coisa de Q.I. é realmente uma coisa engraçada. O meu colega fica numa
só matéria, português, e é reprovado. Já muito tempo depois outro, que sempre
tira dez em tudo, aí, tira 9,9 dá um tiro na cabeça e se escafede; posso
perceber que Q.I.: Quociente de Inteligência, além de ser Quem Indique passa a
ser Que Imbecil! Consolo ou não, o
último lugar nunca me incomoda. Jesus um dia me disse: Quem ri por último rir
melhor; e eu sou um menino feliz. Muito tempo depois fui saber: Os últimos
serão os primeiros, não é dito popular não; está na Bíblia Sagrada. Aí, eu já
tenho a profissão que nunca sonhei; assim como todo mundo, sempre a me esforçar
para ter com que sobreviver. Na verdade eu não sei o que quero; digo ao meu pai
que quero ser engenheiro; ele, que o filho de um amigo seu é Torneiro Mecânico.
E eu oscilo no meu desejo profissional aos dezesseis anos. E o que eu quero
mesmo é apenas uma mixaria para levar a namorada ao cinema. E, nem assim, eu consigo a última fila para a
nossa felicidade.
Zero zero nove - AULA DE
FRANCÊS E POESIA
O meu
pai, autodidata, tinha mãe com paciência para ensinar os outros, menos ele;
aprendeu a ler e escrever sozinho; aos oito anos de idade cuida dos irmãos; o
seu pai morre aos vinte e quatro anos ao comer coalhada e tomar água de coco;
com muito sacrifício chega a funcionário público; é ferroviário, ganha como
capitão.
Tem nove filhos. E todos nós estudamos em escola pública,
quase não tem escola particular; a escola do governo garante o ensino para
ricos e pobres. Uma liberdade vigiada pelo sistema e a igreja. É o
conservadorismo dos costumes com censura e liberdade de expressão nos moldes da
casa. E tudo corre muito bem, pelo menos pra mim. Não atino muito para essas
coisas, sigo o fluxo de todas elas, apenas. Não se fala em greve. As escolas
funcionam muito bem, graças ao sistema. É década de setenta. No começo, o
Brasil é campeão do mundo. E 90 milhões conhecem mais de futebol do que o
próprio nome; se faz muito mais contas, em passar troco, do que saber do
á-bê-cê. As escolas municipais estão à frente das estaduais, por isso, são mais
procuradas. E minha sorte, por influência de amiga de mamãe eu consigo concluir
meu Ginásio no Instituto Municipal João XXIII, no Baldo. Pelo nome e pela
influência tenho meu futuro garantido. Estudo Francês nesta escola e só eu fico
em recuperação. A lição nunca mais sai da minha cabeça:
Allô! C’est
Philippe ledoux?
Oui. C’est moi.
Bonjour Philippe.
C’est Jacques.
Tu vas bien?
Oui. Toi aussi?
Très bien. Merci.
Tu es prêt?
Oui. Je suis prêt.
Viens vite.
Me sinto
muito bem em aprender Francês. Só eu aos treze anos de idade, e a queridíssima
professora. Não me esqueço dela nem do seu bico de francesa de araque, a querer
me beijar. Desejo meu. A sua intenção é me ajudar. Essa é a vantagem de quem
fica em recuperação, diga-se de passagem, sozinho. Frustro-me em recordar que
só dois livros estão em minha memória de escola: Menino de Engenho e Cortiço.
Nunca ouço de meu pai que livro eu tenho que ler, mas ele me compra mensalmente
revistas em quadrinhos de Tarzan, Batman, Popeye, Super-Pateta, Peninha,
Morcego Vermelho. Espero da escola. E esta nunca me diz nada. Meu pai é
autodidata e acredita que a escola nos faça conhecedor como ele. A escola tem
sua didática e não está para transformar ninguém em gênio, tampouco, em
autodidata, por isso ela existe. Se ao menos eu tivesse conciliado a força de
vontade de meu pai. Se ao menos a escola tivesse me indicado a bibliografia de
Machado de Assis, talvez eu tivesse outra visão de mim mesmo e, quem sabe, de
mundo. Porém, a verdade de hoje nada deve à de outrora. Mesmo com greves de
escola, acima de tudo públicas, e tudo mais. Hoje tudo isso me faz lembrar a
verdade da Igreja na Idade Média e a verdade dantes da queda do Muro de Berlim.
Épocas de liberdade de expressão e de verdade absoluta. Eis como é bom o poder
de sonhar e fantasiar as coisas. No ginásio duas coisas permanecem no meu
pensamento: A professora de Francês e Albery, meu colega, lendo poesia para as
meninas da 5ª Série. E sequer eu sei quem é Drummond, Bandeira, Vinícius. Mas o
meu colega recita belo poema:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada......
Certamente,
uma exceção de garoto prodígio. Guardo tudo isso como o doce dulcíssimo dos
meados da década de setenta do meu Ginásio em curso.
Se o
Instituto Municipal João XXIII me proporciona prazeres, o meu sonho agora é
fazer o Científico na Escola Estadual Winston Churchill. Sinto encantadores, o
menino e a menina em bronze, defronte à escola, de pé, a redigirem não sei o
quê em seus cadernos. Eis o mais curioso pra mim. Nunca soube o que eles
escrevem ou lêem. Imagino arriscar em dizer: escrevem algum segredo de
adolescente, e ainda continuam com a mesma jovialidade dos meus dezesseis que
já não mais os tenho. E, o que Oscar Wilde manifesta em O Retrato de Doryan
Grey, agora eu sinto, nessas estátuas. Os meus sonhos são proporcionais às
escolas: públicos, como elas. Para isso nasço e vivo desses pequeninos sonhos.
Não sei sonhar além da minha realidade e, se sonho, talvez não tenha desvendado
o segredo do sucesso de quem nasce em Rede. Realizo o meu sonho e, ao me fazer
Especialíssimo, concluo o Científico, em São Paulo.
Zero dez - JESUÍTA NA
VELHA ALDEIA
E o novo
padre muda tudo. Tira as imagens de santo das paredes. A Igreja Santa Cruz da
Praça São Vicente de Paula, nem parece mais igreja. Troca as imagens por
pinturas. São passagens da própria Bíblia pintadas por Gery, dali mesmo do
povarejo. Mas o povo não gosta de nada daquilo não.
Esse
padre só pode ser herege, onde já se viu isso, meu Deus?! Tirar as imagens da
igreja! Tirou a imagem até da Santa!
Mas, sabe como que é. Padre novo. Vindo da Europa. Cheio
de conversa. Um presente daqui, uma fotografia dali. Um remédio para um. Uma
consulta para outro. A mais de trezentos e setenta anos que a Aldeia Velha se
chama Igapó. Mas o estrangeiro nos ver Pitiguaras. As nossas atitudes nos
denunciam. Não somos índios, mas ficamos feitos beradeiros diante das novidades
vindas da Bélgica. No Galo não tem água encanada, não tem luz elétrica. Padre
Diogy arranja luz a bujão, que ilumina igual à elétrica. Traz escola. Distribui
rádio só com a emissora Rural para transmitir aulas do MEB. Cria Jardim de
Infância: O Lírio; e joga muito confeito de apoito para nós meninos. Não
podemos ouvir o barulho da Rural, é padre Diogy, corremos para ficar pigorando
alguma coisa dele. E depois, ficamos à espera do carro, para pegar o morcego.
Ele empurra o pé para a Rural não atolar. E nós atrepados no pára-choque da
bicha, vamos pinotando feito bode nas areias fofas do corredor de tia Dasry.
Menos de
seis meses, Pe. Diogy já domina o lado esquerdo de quem desce o Potengi de
ponta a ponta. E a Velha Aldeia é, de novo, catequizada em pleno século
XX. Nossa mãe continua a nos educar na
tradição do padre antigo. Não ver com bons olhos o estilo do novo padre. Esta
não é a causa, mas sim, por ser padre novo. Mesmo assim, nos coloca no
catecismo. Nos manda à missa todos os domingos. Fazemos primeira comunhão. E
conhecemos tudo que a igreja nos ensina. Mas o padre novo nos pega com seus
confeitos e chocolates. Nos faz perguntas da Bíblia e nos brinda com suas
milacrias e mingongas. Não perdemos uma missa aos domingos de manhã, doido
pelos confeitos do que mesmo pela missa em si. E a Igreja é cheia. Vem criança
do Igapó inteiro. E Padre Diogy tem poder. Dirige ônibus, pilota avião, medica
paciente. Tem ajuda da LBA, mas o quinhão maior vem lá da Bélgica. São roupas,
comida. O bugô substitui a farinha de trigo para se fazer cuscuz, é igual a
arroz. Tem um gosto diferente, mas alimenta o povo. E o Galo, aos poucos, é
conquistado por ele. A Sede do América F.C. agora é escola, clube de mães, e
igreja. Sr. Oivaty, homem muito social, é categórico:
Padre é
uma Sede, mas pode rezar a sua missa que ninguém vai incomodar.
E dona
Ycara passa à presidência do Clube de Mães e, às quintas-feiras, arruma a
sede-igreja com a mesma sua fé do padre antigo, lá da igreja Santa Cruz:
Meninos!
Está na hora de dormir. Vamos rezar: Pai nosso, que estais no céu...
Santa
Maria, mãe de Deus. Rogai por nós pecadores...
Todo dia santo e não santo antes de dormir. Quando é de
manhã.
Abênça
mãe! Deus te abençoe.
Ozodyrak!
Rezou quando se levantou?
Não mãe!
Vá rezar
menino! Onde já se viu uma coisa dessas! Se deita anjo e se levanta feito
cavalo.
E com o
tempo rezamos sozinhos, antes e após de dormir. Isso é de pé, no meio da casa.
A cochilar, a abrir a boca, a coçar a cabeça num frenesi desesperado, em tempo
de se cair. Muitas vezes, só sai mesmo o Pai Nosso. O sono não deixa o resto.
Abênça mãe! Deus te abençoe!
E o
balanço da rede se incumbe do resto.
Quão imensurável é o poder do Jesuíta. O Galo de minha infância, que meu pai conta a
sua origem, o Jesuíta não vê com bons olhos. Muda para Km 8. E a tradição
secular do Galo de bronze no alto do extinto casarão, é destruída. E a
miserabilidade do povarejo sobressai ao tradicional orgulho galense para
quilometroitense inconsciente. Uma denominação digna ao tamanho da fé, da
carência e da ignorância de todos nós.
Zero onze - OS MESES DE
LUZ
“Venham!
Venham! Venham beijar! Já deu nove horas. Eu torno a chamar...“
Um canto
triste a entoar graças à Maria. A fila a se estender rua à fora com velhas e
crianças a atenderem o chamado de dona Naldy. Emocionada, é dia 20 do mês de
Maria, dá-se vivas pelas graças alcançadas. O seu filho voltou de São Paulo,
sua promessa, rezar terço até não se sabe quando; ela, e sua filha. Sua filha
acha isso uma injustiça. O que tem ela a ver com promessa dos outros? Todo dia
20 é a mesma ladainha e a mesa arrumada, cheia de velas, e padre Cícero Romão
no meio.
Vai
menino, beijar o santo!
Eu vejo
a imagem, mas são as velas que me deixam encantado. Faço o sinal da cruz, mas
fico em débito com o beijo. No terreiro, os folguedos nos alegram mais ainda do
que as rezas. Os seus pipocos e as chuvas faiscantes brilham no céu e em nossos
olhos. Caem as varetas, corremos para pegar a taboca que fede que só peido.
Maio,
junho, dezembro, meses de alegria, de luz para as casas e para a Igreja. Santa
Maria, São João, Jesus Cristo estão nas festas de pobres e ricos. O Galo está a
cantar na alegria de seu povo, em toda casa a cada dia uma romaria. As mulheres
com seus cantos chorosos homenageiam a Mãe de Deus.
Mamãe,
devota do Coração de Jesus, é do apostolado, reza as novenas de maio. Arruma a
sede, Pe. Diogy celebra a missa de Quinta-feira, depois as mulheres rezam o
Terço de maio. Ajoelhada defronte o oratório, debulha do seu rosário
Ave-Marias. E no canto merencório da velharada, as minhas tias cochilam que nem
gato de biqueira. Tia Ely no tamborete, tia Dasry no sofá, tia Nary de pé se
assustam a cada pipoco que vem lá de fora; desconfiadas voltam a rezar, mas o
terço já anuncia o seu final com o canto de Venham Beijar!
“Venham!
Venham! Venham beijar! Já deu nove horas. Eu torno a chamar...“
Zero doze - PRELÚDIOS DA
CASA DE MÃE JOANA
De casa,
sou o primeiro que saio do sitio para estudar na cidade; aqui, o pessoal é
muito diferente; pra eles, sou matuto, arigó, e a minha fala faz diferença,
morando tão pertinho de Natal. O meu 1º e 2º ano primário eu faço na Escola
Estadual Reunidas Potiguassu, em Igapó; já o 3º, 4º e 5º, na Escola Municipal
Ferreira Itajubá, no bairro das Quintas, no outro lado do Potengi. Eu estou
predestinado a seguir o meu caminho – não digo sozinho –, mas comigo mesmo. Dos
nove filhos, pela lei da escadinha, jamais podemos estudar na mesma série,
sempre alguém está à frente um do outro pelo menos um ano, visto que não tem
gêmeo na família. E o meu irmão é o meu primo de mesma idade. Somos tão manos,
que os colegas nos dão as alcunhas de: Salvador, ele, e eu, Bahia. Mas no Ferreira
Itajubá, eu começo a medir a responsabilidade que terei sobre mim mesmo. Tenho
que saber escolher as pessoas, com quem andar e com quem falar, acima de tudo.
A partir daí, passo a ser dono do meu nariz mesmo sem nada entender desse
provérbio, mas a entender do mundo, inconsciente, porque, agora, eu sou um
estado sem capital, Salvador, o meu primo, toma outro rumo. E sigo comigo
mesmo, na inversão do provérbio:
E antes comigo mesmo
Do que mal acompanhado
Quem hora me ver a esmo
Não vê Deus bem do meu lado.
Desde
sempre sou de andar a pé; ando quilômetros sem me cansar. De casa até a parada
de ônibus, dois. Não imagina a leitora o sacrifício que faço só pra pegar o
Rocas-Quintas-Igapó. Da escola à parada, em média dois quilômetros, porém eu
ando mais um, pra conseguir entrar na lotação; só assim eu chego a minha casa.
Eis que na parada mais próxima, eu, o menino estudante não tem nenhum valor
para motorista de ônibus, de nada vale a minha farda, os meus cadernos e
livros. Estendo o braço a pedir parada e nunca que me respeitam, nem ao menos a
minha farda! Como eu me vejo bonito em meu uniforme de escola; nunca sequer
medem a minha responsabilidade de estudante. Na entrada para Igapó, na
corrente, a lotação pára para as pessoas grandes, só assim, consigo pegar o
ônibus para chegar em casa. Dificilmente, tem adulto defronte ao Armazém
Cacique, na Mário Negócio, pra não me fazer andar tanto daquele jeito.
Como
aventura de menino, tiro da escola até em casa a pé. E nunca reclamo de
cansaço; vivo a marchar igualmente os samangos do Exército, eles passam pela
estrada indo não sei para aonde. Por isso, sonho no sete de setembro desfilar
pela escola. Quantas vezes até ensaio a marcha, mas a farda sempre está ora
desbotada ora rasgada, nunca é possível. O meu desejo é o mesmo de meu pai que
queria servir o Exército, no fim da 2ª guerra, e não consegue. Isto tudo se dá
no meu primário.
No
ginásio, já me esqueço de tudo isso, agora, eu quero praticar esporte. O
Instituto Municipal João XXIII proporciona aos alunos, ao menos, a noção de
modalidades várias. Inicio Handebol, Atletismo, Futebol de Campo, Basquete, mas
o que me serve é a Natação das Escolinhas Prefeito Dr. Jorge Ivan Cascudo
Rodrigues, nas piscinas do Clube América, por alguns anos apenas. Porém, termino
por fazer o que todo estudante público faz: a sua Educação Física obrigatória.
Estou eu
a me levantar, às 5h da manhã, igualmente ao meu pai, só pra cumprir com a
obrigação de estudante. Vou pra Educação Física, agora imagine o leitor aonde é
o lugar. Já imaginou? Se pensou em Quartel, acertou. Justamente num Batalhão de
Polícia. E toda a manhã lá está eu, a assistir, desfile, toque de corneta e
hasteamento da Bandeira Nacional. Não consigo expressar com justeza o que vejo
ou sinto em tudo aquilo, mas guardo nitidamente, o dia em que chego atrasado
pra Educação Física quando, pelo portão principal da caserna, às pressas, vou
entrando; confesso que tive as melhores das intenções. De repente, um grito:
Ô seu
moleque! Pare! Está pensando que aqui é casa de mãe Joana! Venha aqui e se
identifique!
Não
consigo entender, quanta estupidez aquele homem armado me trata, se eu e ele
estamos fardados. Na minha inocência aquele homem não age como homem. E o meu uniforme
de Educação Física? Os meus colegas que já haviam entrado para o campo? O
professor? Tudo isso, inútil pra quem
protege a caserna e não a casa de Mãe Joana, mesmo diante de uma criança.
Todavia,
o futuro conservou os meus sonhos de menino, paradoxalmente me faço milico e
mãe Joana me aparece novamente; mais tarde, na Especialíssima, quando me atraso
para o café. Contudo, eu já tenho consciência do valor da mãe que possuo e o
seu nome não é Joana, quando passo a entender a metáfora.
Zero treze - SONHO E
MILÍCIA
Meus
fins de semana nas Quintas, na casa da tia de meu pai, esposa de sargento
Naval; eu admiro na sala, a pinacoteca de tia Karmy. Entre quadros de santos e
retratos de Marinha, de Exército e de Naval, estão o marido e os seus filhos a
me encherem os olhos e o coração de branco marinheiro, dependurados nas
paredes. Olho tudo isso com inocente admiração. Quero vestir àquela roupa, a
qual, não contém o mesmo branco da minha inocente idade. Cresço e descubro a
razão e vou vestir azul, contrariando assim o meu sonho. Mas por força da
influência e do desejo infantil, acabo por entrar na Milícia. E Oivaty, meu
pai, participa do sucesso. Ferroviário por tradição, ajudado pelo tio, em
seguida coloca o irmão. O funcionalismo é assim, e a carreira nas milícias não
foge da regra, é páreo duro com a igreja. É a tríade da tradição: de pai para
filhos, amém!
Meu pai,
amigo de sargento de Milícia, me induz ao caminho que meu primo, sargento
Especialíssimo, me dá bilhete para apresentar ao sargento do alistamento para
me tornar S3, por uma semana. Meses antes do serviço obrigatório, participo do
voluntariado. E eu, aluno de escola pública no ano 1979, presto concurso para
Especialíssima. E duma semana de S3 passo, tão logo, a 24 meses de 3S. E me vou,
nordestino, para terra que tanto me assusta com A Triste Partida, na voz
merencória de Luiz Gonzaga. Deixo pela vez primeira, pai, mãe e oito
irmãos. Sou, eu, o filho pródigo às
avessas? Não, não deixo nem levo bens algum, mas corro atrás de um sonho mesquinho:
Ter uma profissão. Da triste partida eu sou ciente; duvido agora do meu destino
com Leidy, que muito chora, mais pela sua dúvida: Ozodyrak em São Paulo não
será mais o mesmo que em Natal, jamais. Aos dezoito descubro que chorar faz bem
ao homem, isso meu pai me ensina, quando me vou embora e me torno a Orquídea
Negra da família.
Zero quatorze - PRÍNCIPE
DANILO
Somos em
nove. Três homens e seis mulheres. Eu o terceiro e o mais velho dos meninos.
Duas irmãs estão à minha frente. Elas assumem as responsabilidades de mulher.
Nós, as de homem. Nunca lavo um prato sequer. Nunca varro uma casa. Ainda
assim, as meninas fazem as mesmas coisas de menino. Carregam lata d’água na
cabeça e nós botamos três galões d’água por dia. É a nossa obrigação e pronto.
O resto do dia é jogar bola, tomar banho de maré, armar ratoeira de goiamum,
jogar biloca e bagunçar no sítio Santa Maravilha, aperreando a vida de dona
Silvia e de seu Nazareno.
Ninguém
quer outra vida não, é só brincadeira. Não se tem tempo de pensar em estudo. Ao
contrário, os poucos que vão à escola, não se ver a hora de ouvir o sinal bater
para chegar em casa e se mandar pelo mundo. A minha mãe, coitada, não pode nos
conter, eu e meu irmão. Ela só tem tempo para cuidar dos menores. A suportar a
velha prática machista da época:
Um fora, um dentro,
Outro no pensamento e,
Se pudesse, seria um
A todo o momento.
E a
classe paternalista, em suas farras, a arrotar poder de Macho para preservar a
espécie. Alardeiam a quantidade e se esquecem da qualidade. Interpretam a bel
prazer, e de acordo com a tradição e, menos com a realidade, o que está nas
Escrituras Sagradas: Crescei e multiplicai. E, os mais ignorantes vão aos
extremos:
Quantos
filhos tu tivesse?
Eu não
tive nenhum filho não, quem teve foi a minha mulher, sete.
E tu?
Tenho
nove.
Ah,
vocês não estão com nada!
Lá em
casa são doze filhos. Isso porque a mulher bateu fofo. Mas ainda não estou
negando fogo não. De vez enquanto ainda dou meus pulinhos por fora. Devo ter
alguns bruguelinhos perdidos por aí.
E o meu
pai não foge da regra também. Teve doze. Mas, apenas nove sobrevivem. Por isso
estou aqui vivendo este sonho.
Como diz: Estudar que é bom necas, pouco se pensa nisso.
E é justamente desse pensar e fazer pouquinho que sobrevivo da molecada boa.
Marcelo, pedreiro. Carlan, vigilante. Jonny, bancário. Eu, que por veneta
estudo, procuro fugir da regra. Às noites, é que pego nos cadernos e faço
alguma lição a meu modo. Às vezes, é para valer mesmo, pego com gosto de gás.
Sento-me numa mesa que só tem um pé. Chamamos de “mesa de pé redondo”. E, à luz
da lamparina, queimo as pestanas. A bem da verdade não são só as pestanas não,
mas os cabelos também. Tomado pelo cansaço das brincadeiras diurnas, sempre
termino dormindo. Com a cabeça sobre os braços, como travesseiro. Cochilo, às
vezes, durmo que ressono. Ronco talvez. Muito próximo da lamparina, não sei às
vezes em que me acordo com a catinga de cabelo queimado. A minha sorte é que a
minha sina à milícia já está traçada antes mesmo de saber. Uso cabelos curtos.
Ou melhor, quengo bem raspado; cabeça cuíca, busca-ré que mais tarde vou saber
o que é: Príncipe Danilo. O meu pai é um militar sem ser. E nós meninos também.
Temos as cabeças iguais às dos samangos da polícia. Somos todos meganhas, sem
essa de moda, é a pura realidade mesmo. E eu, menino, sonho ficar adulto. Quero
cortar meia cabeleira. E meu pai, ao ouvir o apito do navio a entrar ou sair na
barra do Potengi. Diz-nos:
Lá vem o
navio dos cabeludos!
Isso,
quando o nosso cabelo cresce um pouquinho acima do normal. Confesso que me dá
um pouco de medo, mas ainda assim, prefiro a meia cabeleira. E para piorar a
situação. O martírio maior é ter que enfrentar a máquina do meu tio. Cega que
dá nos nervos. E ele, leva a vida de um burro para cortar um cabelo. Tece
conversas do arco da velha. A velha e eterna ladainha de barbeiro.
Mesmo assim, a minha vida é salva pelo Príncipe Danilo.
Eu posso estudar e dormir à vontade sem receio de morrer com a cabeça
incendiada ao fogo da lamparina. Dias depois, encontro uma forma de não
arriscar mais a vida. E o pé de Jasmim laranja me proporciona meios para
estudar durante o dia. À sua sombra me acolho por muitos anos, e é justamente
dela, que saio pelo mundo afora. Quando volto, anos após, não mais o encontro.
Nem rastro nem sombra. O progresso o tinha devastado e dizimado parte dos meus
sonhos de criança. Agora, vivo o pesadelo de adulto. Eis leitora, portanto, o
meu pesadelo que se faz real.
Sempre a estudar sozinho
Lá no meu pé de Jasmim
Passava horas e horas
Nem se lembravam de mim
Ora estava a estudar
Às vezes, a cochilar
Sempre e sempre era assim
Um dia, na minha casa
À noite, a estudar
Dei um cochilo daqueles
E quase que vi findar
Ao fogo da lamparina
Meu cabelo feito crina
Vi num susto eu acordar!
Zero quinze - OS
PRIMEIROS E ÚLTIMOS DIAS DE S3
Faço
dezoito anos vou servir a Força Aérea Brasileira, prestar serviço nas Forças
Armadas, como serviço obrigatório, mas antes presto concurso para EEAR, e com
isso, faço meu primeiro investimento real com as minhas pratinhas, pago a
inscrição para o concurso público, no valor de CR$ 120.00, na agência Banco do
Brasil da Av. Rio Branco. Tudo é muito rápido, passo no concurso e vou para
Especialíssima.
Em
Natal, no CATRE, cento e tantos homens e só eu a me sentir S3 entre eles. O meu
serviço voluntariado me faz pensar assim, naquele obrigatório. Os dias estão
contados, diz a minha consciência. Como quero que esses dias voem. Nem todos
podem ver que a minha consciência tem razão, isso é segredo meu e de Deus, mas
alguns deles partilham desse mesmo desejo. Para muitos, estar aqui é a
realização maior dos seus desejos. Descubro então que cada um tem o desejo que
merece ou procura. Eu desejo e procuro algo não muito além, mas da mesma
família dos ésses até a morte como milico. De S3 para 3S. Para eles, uma ascensão
extrapolante, para mim, considerável apenas. E a minha cabeça resgata o desejo
de meu pai; agora, eu sou príncipe de verdade. Pobre de mim, Danilo, e não Rid
ou Ozodyrak. S3 Narum, é como me chamam, 074. Mais por este do que pelo outro.
O número é o nome para todos aqui. Promoção ou redução?
Sol
causticante é janeiro de 1980, digno do sertão em Natal. Na quadra escaldante
exercitamos, sem piedade, mas com vibração, sem medo de hemorróidas.
Um,
dois, três... cem! Frente para retaguarda! Um, dos, três... cem!
Deitado!
De pé! Sentado! Correndo! Rolando!
E aquele
bando de homem a gritar feliz da vida. Descubro, quanto poder tem os homens
quando unidos. Há meses que não chove em Natal, no sertão morrem gado,
plantações, homens, mulheres e crianças de sede. Depois de muito ralarmos,
voltamos à quadra de esportes; mais uma série interminável de exercícios, o
cansaço se aplaca em alguns. E o sargento, digno de um sertanejo, ordena:
Mãos
para cima! Todos gritando, comigo! Água! Água! Água! Mande água Senhor!
Encerra
a instrução por este dia. É cinco da tarde, o sol já desaparece no horizonte,
nem sinal de chuva nem aqui, nem no sertão.
Todos
fazem jus aos seus merecidos descansos, exceto alguns noctívagos voluntários,
práticos em atanazar a vida dos outros. Sempre existem os que procuram se
beneficiar do seu medíocre poder, ante os fracos. Digo, nem todos têm esse
direito. Quando menos se espera, uma luz forte de flachelaite entra no
alojamento, e um tal de plantão nos acorda, indelicadamente!
Acorda!
Levanta! Tá na tua hora!
É o
maldito quarto de hora, a estragar a melhor hora da dormida. Isso é a qualquer
hora do dia ou da noite, uma maldita perseguição, tenho que me acostumar com
isso. Assim é a vida, assim é na milícia. Estou na primeira semana, é a
quarentena de soldado, um início cruel e difícil de aceitar. Não se compara à
moleza de vida no sítio Santa Maravilha, nem à do Galo, mas eu estou decidido.
Quero independência, levar Leidy ao cinema.
A exaustão me faz sonhar com o sítio, quando um estrondo acorda todo
mundo assustado. Os nossos apelos d’água, à tarde, são atendidos, à meia-noite.
São Pedro abre as comportas da represa, o Itãs, o Orós se empanzinam juntamente
aos irmãos nordestinos. E meu colega, Zomatum, de Caicó transborda de
felicidade pelos olhos, quando sua mãe ao telefone lhe diz:
A roça
está bonita, meu filho! O gado, os borregos, as galinhas estão gordas que dá
gosto!
É
Sexta-feira, final de expediente, o sargento da prece nos bota em forma, e
brada o número 074. Tremo. Não é coisa boa ser chamado daquele jeito, mormente,
pelo superior. Penso logo: estou preso! Depois: o que fiz? E lá vou eu,
franzino, desnutrido, cambaleante.
Vem até
aqui, soldado 074. Aperta a minha mão!
Penso, é
sacanagem do superior. Dá uns dez de mim o homem. Vai esmagar a minha pobre
mãozinha esquelética. Lembro: um pedido do superior é uma ordem. É o que rege
na cartilha dessa escola. Idiotamente aperto, ouço risos distantes.
Sobe
aqui soldado! É um banco de mármore defronte à Companhia.
Agora,
faça um discurso para os seus colegas, pois, você está indo para a
Especialíssima.
Falo
qualquer coisa que não sei bem o que digo, gostaria muito de saber. Só lembro o
que me faz realmente falar, é a felicidade de estar fugindo desse inferno.
Porém, vou viver à semelhança dos últimos e únicos dias de S3 na Especialíssima,
agora, a caminho de 3S.
Zero dezesseis - A
TRISTE PARTIDA I
A
notícia de que vou embora pra São Paulo, corre solta pelo povarejo. Todo mundo
se conhece e quando alguém vai embora pra longe, é um alvoroço e um mundaréu de
gente pra despedida.
Faça uma boa viagem! Deus te acompanhe! Não deixe de mandar notícia não! Faça de
tudo, mas não se esqueça de sua mãe. O
bom filho se lembra sempre da mãe!
Todo
pessoal de casa espera por este dia, mas é um chororô peitado, quando começo
arrumar a mala. E quando saio pro Aeroporto é pior. Nem meu pai resiste. Até a
vizinha que eu boto água pra ela, chora. Estou indo pra guerra? Sou eu mais um
filho pródigo, a contrariar os pais, para se aventurar pelo mundo? Não, não é
nada disso. Dos nove fora eu. É a matemática que justifica o momento. Minha mãe
vê me desgarrar do seio familiar e nada pode fazer, mas não pode sofrer a
síndrome do ninho vazio porque, dos nove, eu sou o primeiro e único a sair pelo
mundo. O lugar mais distante que fui aos doze, Macau, com pai e meu irmão. Por
isso ela sofre em silêncio.
Janeiro
do ano de 1980 do século XX, dia 19, às 14 horas de Sexta-feira é a viagem. Vou
ao Alecrim, com irmã, comprar calça, sapato, mala tudo novinho em folha. Não é
tempo de comprar roupas novas, mas a minha situação é especial, viajo pra bem
longe, vou pra São Paulo.
Olha!
Ozo vai prá São Paulo! Os meninos da rua me olham com admiração e os homens
também. Com isso, eu quebro a tradição de só vestir roupa nova pelo São João e
pelo Natal, mas vou sentir saudade pra me amostrar de roupa nova com meus
irmãos, a me exibir na missa de Ano Novo, na Praça São Vicente de Paula, pras
meninas. E, adeus São João, São Pedro e tudo mais.
A
Parnamirim vai a família inteira e alguns amigos pro Aeroporto Augusto Severo.
Leidy, minha namorada, me enche de recomendações – as mesmas da minha mãe –,
ela está mais pra genitora do que pra namorada. Eu a ouço, mas não entendo nada
do que me fala. Estou ansioso com o horário. O aeroporto é o da milícia,
Correio Aéreo Nacional - CAN, mas o Augusto Severo está ao lado. Cada monstro
que pousa a roncar estridentemente é o que vai me levar. O meu coração se
atordoa de expectativas idiotas a cada pouso.
A
notícia chega em cima da hora, às 14. O avião está em pane no Rio de Janeiro,
problema no trem de pouso. A viagem fica pro dia seguinte.
Algumas
mães ficam aflitas: Problema no trem de pouso?! O que é isso?! Mas tudo é
explicado a tempo por um perito em aviação.
Quem fica alegre é a minha mãe. Vai ter o filho, ao seu lado, por mais
algumas horinhas. Porém, à distância Parnamirim x Igapó me impede de satisfazer
o desejo seu. A convite de Juray R., futuro Especialíssimo, moro por dois dias
em sua casa de Parnamirim.
Zero dezessete - A
TRISTE PARTIDA II
Três
horas antes do previsto, estamos no CAN de mala e cuia. Nós somos dez, nove dos
futuros Especialíssimos estão com seus familiares, exceto eu. Ninguém da
família vem à minha partida, eu careço do abraço, do beijo amigo de quem se
despede. Começo então a compreender os prenúncios de como será o meu destino.
Tenho que exercitar a lei da sobrevivência do Antes Comigo Mesmo do que Mal
Acompanhado. Dona Resy, minha primeira mãe adotiva, me aconselha como eu sendo
Juray R., seu filho. Mas pra mim, ainda é cedo demais, sinto que num futuro
breve vou estar a carecer de minha mãe de verdade.
O Sábado
é de sol, bom para pouso e decolagem, e nem sinal do avião. O aeroporto,
Augusto Severo, está cheio deles e fazem um barulho condenado. De quando em
vez, o mensageiro do chefe vem à sala de espera e diz: o avião está saindo do
RJ. Quatorze horas e nada. O meu coração se cansa de tanta ansiedade, toma seu
pulso normal. 15 horas e nada. As expectativas dos outros se igualam à minha;
agora, estamos mais tranqüilos. Às 16, o chefe do CAN informa que o avião
passará em Natal na Sexta-feira, oito dias após o previsto. Vamos embora com
resquício de frustração, não temos mais o que dizer aos nossos parentes.
Zero dezoito - A TRISTE
PARTIDA III
Estamos
calejados dos lapsos ocorridos. Chegamos ao CAN já sem expectativas, mas com
esperanças de que um dia o avião aparece, a todo preço dos nossos sonhos e
desejos investidos.
Porém,
todo esse atraso tem uma explicação pra mim, que só descubro quando vejo
estampada no rosto da minha mãe a felicidade de A Triste Partida I. Pois então,
satisfaço seu desejo e posso medir quanto poder existe num coração de mãe. É
Domingo de manhã e ninguém acredita mais que seja eu mesmo. Quem sabe, não é
uma visagem? Mas não, só a minha mãe e eu sabemos do segredo deste reencontro.
É segredo dela, deseja de coração me ver antes de partir, quer me desejar boa
viagem, me abraçar, me beijar. E faz tudo isso. Na quinta-feira, ninguém mais
chora quando parto a dizer: Tchau! Até mais tarde! Até breve! Tinha medo de
dizer adeus e nunca mais voltar. Vejam que em A Triste Partida II, o avião está
previsto para sexta-feira e, às carreiras tive que sair, na quinta-feira, para
o aeroporto.
Ninguém
dos familiares quis mais ser enganado não. No final, só os futuros
Especialíssimos ainda acreditam e arriscam na viagem dos seus sonhos. É nosso
futuro que está em jogo, marcado pela propaganda do rádio e da televisão:
JOVEM,
ESSE É O SEU CAMINHO! SEJA ESPECIALÍSSIMO E GARANTA O SEU FUTURO!!!
Eu li
num daqueles folhetos de rua: no final de dois anos, você recebe uma bolada de
Cr$ 20.000,00. Isso garante o futuro de
qualquer um. E aos dezessete anos, não somos diferentes, acreditamos no slogan.
Não
somos vencidos pelo cansaço. Eis a minha 1ª lição: aprendo a ter paciência.
Duas horas após do previsto um monstro, aos roncos, cruza os céus da terra
potiguar. E, paradoxalmente, como um bicho alado, travestido de baleia, o vejo
pousar na pista escaldante da terra potiguar. Pegamos nossos apetrechos,
entramos pelo fundo do bichão, ainda a arfar de cansado. E dentro da sua
barriga, desperto e vejo um monte de homens presos por tiras encarnadas. Me faz
lembrar Ben Hur e dos homens das galés. Bem que poderia ter sido Jonas. Mas
não, ali dentro nada tem a ver com baleia. Porém, um homem todo de verde oliva
camuflado, nos explica:
Esta
aeronave é um C-130, também conhecida de Hércules, vamos voar a dez mil pés; o
voo vai durar quarenta minutos, iremos pousar no Guararapes e pernoitaremos na
Base de Recife. Desejamos a todos uma boa viagem!
A partir
daqui eu penso que não mais existe mulher na face da terra. Para onde eu me
viro, vejo homens de toda cor, tamanho, fala e jeito estranho. E por diferenciar dos navios que vinham da
África eu posso acreditar que não era sonho e que estou mesmo no Brasil. Às
dezoito, jantamos e fomos dormir. Às sete horas da manhã rumamos para
Especialíssima em Guaratinguetá.
Vou pra
São Paulo. Um sonho de muitos nordestinos que eu sou, mas sem sonho. Eu sou do
litoral, mas tenho alguma coisa de sertão em meu coração. Adquiro ao pé do
rádio, no programa do Coroné Bulachinha, às 4 da tarde, na voz merencória de
Luiz Gonzaga. A cada minuto que me aproximo, São Paulo me lembra A Triste
Partida de Patativa do Assaré e só me vem à cabeça o final da música de Luiz:
Distante da terra
tão seca mas boa,
Exposto à garoa,
À lama e ao paú,
Faz pena o nortista,
tão forte, tão bravo,
Vivê como escravo
Nas terras do Su.
Porém,
não prevalece em mim o desejo de vir por vir a São Paulo. Está aqui, não é
simplesmente estar, nem é para sempre. É apenas uma estadia provisória, dois
anos, o previsto. Mas o destino poderá reduzir a minha desgraça ou, estender
por mais anos, a felicidade de todos? Mas, ainda assim, difere daquele outro
que vem também por sonho e volta sem ele. A demora do meu tempo será a
realização real do sonho ou não. Eis a minha dúvida, o futuro só a Deus
pertence, e como bom nordestino eu acredito no Dono do vindouro e vou à
luta.
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