ESTATÍSTICA DIÁRIA

ADMIRADORES DAS IDEIAS

sábado, 27 de julho de 2013

III LIVRO - POVAREJO: CONTOS E LENDAS - NATAL. RN - 2004




CONVOCANDO O LEITOR AMOROSO

O leitor amoroso está num nível muito mais elevado que o filósofo, o psicólogo, o psicanalista; que o crítico ou ‘professor de literatura’. E se, por um acidente astral, numa só alma há um leitor amoroso e um filósofo (e\ou psicólogo, psicanalista, crítico...), o leitor amoroso sobrepõe-se ao filósofo... Caso contrário, trata-se apenas dum leitor moroso ou apenas dum filósofo... E quem é um leitor amoroso? a) É aquele que sabe que um texto pode ser um fenômeno, dependendo de sua capacidade (do leitor amoroso) de perscrutar o mais profundo motivo (con)textual; aquele que sabe que um texto, portanto, pertence ao instante, e que por isso não deve nada ao passado, ao legado cultural; que um texto não é uma conseqüência mas um início que reinaugura (ou inaugura) a literatura. Difícil aceitar isso? Tão difícil quanto necessário; b) Aquele que respeita a individualidade de uma imaginação criadora; c) Aquele que renuncia ao pré-conhecimento, fonte potencial de preconceitos, e sai constantemente a reaprender (ou aprender), qual criança em seu primeiro contato com a palavra, todo o sentido do universo. E afinal estas três fundamentais características do leitor amoroso se fundem: ele entende que um texto é um reagrupamento de todas as coisas, uma nova ordem compreendida somente se estivermos, paradoxalmente falando, preparados a caminhar rumo ao caos, ou seja, se estivermos dispostos a atirar fora toda a nossa carga cultural, no instante da leitura. É então assim, tão-somente assim, por dignidade, que o leitor adquire a mesma importância do criador do texto (e por que não dizer que é assim, por dignidade, que o humano adquire a mesma importância do Criador do universo?), pois texto é circuito que só se fecha, só funciona quando encontra o leitor que já vinha amorosamente em busca dele. Os físicos ainda procuram uma teoria geral para o universo. Mas há textos que oferecem uma teoria geral para o universo e uma nova teoria geral para o universo a cada nova leitura: uma física verdadeira, nunca morosa, dinâmica, habitante do instante, portanto variável de acordo com o nosso poder de captar o sublime-literatura que nasce da contemplação inocente, ou isenta. Pode-se dizer que voar é também um tipo de pouso, basta que o observador esteja lá com o pássaro, ou como pássaro... e assim nem mais há teoria... tudo é o momento, a CRIAnça que, guiada por intuição divina, cria ‘inconseqüentemente’ o maravilhoso, porque para ela imaginação e ação não são distintas. A percepção da criança nunca está incorreta, pois não está contaminada dos morosos vícios intelectuais. Não existe ato mais grosseiro, mais rude que classificar de ‘infantil’, dizer que é ‘criança’ uma pessoa que age incorretamente. Uma pessoa que age incorretamente é uma pessoa mal informada ou malvada, insensível, tola, corrupta... jamais criança. Do mesmo modo, muitos adultos morosos têm a infeliz mania de subestimar a capacidade de raciocínio da criança. Que acordem para a (e)terna novidade, a mágica inteligência desses anjos! Se não tivermos cuidado, teremos experimentado sabedoria plena uma só vez na vida: na infância temporal. Aprendamos mais com as crianças. Desfrutemos mais, muito mais de sua angélica companhia. Estejamos EM INFÂNCIA. No poema muito bem intitulado ‘Carrossel’ (que remete ao movimento, ao dinamismo do mundo da criança... muito provavelmente se o carrossel fosse um brinquedo parado a criança não gostaria dele...), que figura na obra ‘No Coração das Palavras’, Alexandre Abrantes de Albuquerque nos dá um exemplo da sabedoria de ser criança: 
(11) ‘eu dizia “Fazeu”
        e a arte estava pronta.’

E quem ousa dizer que esse raciocínio de anjo está incorreto? Quem atirar pedra deixará de ser anjo, deixará de ser límpido, puro, lúcido. Diria até que deixará de ser alma. Devemos estar em infância, onde as coisas são imediatamente as coisas. Infância é habitat natural do leitor amoroso. 


J. Xavierdelneto
(estudante de eletromecânica)



PREFÁCIO

Um livro que conta lendas, que resgata a memória de uma parcela da sociedade que ainda não foi mutilada pela tecnologia, eis o que MC Garcia nos presenteia. Num tempo em que impera a tecnologia sobre todas as outras coisas, o autor faz-nos imaginar aquele tempo em que os dissabores da vida eram adocicados pelas fantasias que nasciam das nossas mais remotas civilizações criando lendas, heróis, contos, melhor dizendo, brincando com a imaginação. 

MC Garcia surpreende-me pela ousadia de publicar um livro com lendas e contos que retratam a face escura da realidade: a fome. Em seus dois contos intitulados “Indiferença” e “Mendaz Independência” o autor nos leva a uma reflexão sobre o amor ao próximo, o cuidado, o respeito, o saber doar-se não só de corpo, mas de âmago. O livro “Povarejo”, não tem idade, não tem cor, não tem camada social, é um livro com o enigma que Édipo desvendou, ou seja, tem quatro pernas pela manhã, à tarde tem duas, e à noite tem três. Para as quatro pernas, as crianças que ainda não aprenderam a andar, MC Garcia nos embala com o personagem Oireb, para as duas pernas, os homens que vivem correndo pra lá e pra cá ele nos dedica a maior parte do seu livro, sendo os personagens Zade e Ami um exemplo para o despertar de um pensamento crítico e para as três pernas, aqueles mais velhinhos que necessitam de um cajado ou bengala para andar eis um livro para ler e relembrar os bons momentos da vida, que ficam lá nas profundezas do nosso ser quando a idade madura bate à nossa porta roubando-nos a juventude e muitas vezes os parentes e amigos. 

O livro “Povarejo” nada mais é do que palavras escritas por um homem que também sente fome, mas felizmente sua fome é a de escrever. E como as suas próprias palavras nos diz no conto Indiferença “A fome cega”, MC Garcia é cego de amor pela arte da escrita. Assim, honra-me prefaciar este livro cheio de encanto, magia, coisas que só quando criança tive acesso e que hoje a idade adulta me assusta diante de tanta correria. Hoje, parei para ler e reler o livro deste autor que não esqueceu de contemplar a natureza nem a si mesmo. Que este “Povarejo” aguce a nossa imaginação para que novas lendas nos tragam mais desejo pela literatura, principalmente quando se trata de uma literatura que brinca de ciranda com a imaginação do escritor e do leitor. 

Rosângela Trajano 
Escritora e Poetisa 




         Aos nossos filhos Otávio e Maurício; a nossas sobrinhas e sobrinhos Jailton e Jailma, Renato e Robério, Wendell e Welldson, Mayara e Maraísa, Emerson e Eberson, Marcílio e Fernanda, Leonardo e Erivelto Júnior. 
E a toda criança que  nasceu na era da TV e do PC e não teve oportunidade de ouvir estórias contadas pela vovó sentada numa calçada iluminada pelo olhar de lucina.






INDIFERENÇA


            PRINCÍPIO de semana e término de um domingo repleto de ócio em que o crepúsculo já fenecera e o relógio do tempo, através de lucina, dizia que já passava das vinte horas. 
A noite de verão dava-nos o privilégio de deleitarmos na leve brisa vinda do mar por caminhos e ruas, entrando portão a dentro para acariciar a mim e ao nosso filho que embalávamos na rede, com a porta da sala entreaberta. 
Quando num triscar de olhos, vi passar velozmente um indecifrável vulto que, certamente, não era o vento. Algo passara sob o meu nariz e do da mãe do pequerrucho, a qual, muito aflita me perguntou se eu vira o que passara. Sem hesitar, respondi-lhe: 
“Foi um gato”. 
No meu âmago, fora a intuição que respondera. Fiquei a questionar comigo mesmo a minha resposta. 
Yrla, por sua vez,  resolveu passar a limpo nossa dúvida e, bem chegou à porta, viu dentro de nossa casa, no alpendre, um homem. 
“Meu Deus, um homem!” 
Yrla se desesperou.
Fiquei a pensar. Se aquilo era homem, este seria esquisito demais. Apesar de bípede, andava de quatro e muito rente à parede, feito bicho. Até me fez lembrar Manoel Bandeira. Sim, estava indo em direção ao latão de lixo que se encontrava lá atrás, no quintal.
Pois sim, o incrível é que aquele homenzinho conseguira entrar na nossa hospitalidade sem pedir licença, mesmo com os muros altos e os portões fechados a cadeados. 
Calei-me a meditar: 
“Quem tem fome não pede licença”.
Fiquem sabendo, leitoras, que o tal bicho reduzira tanto que se fizera mínimo em estatura. Ou seja, se eliminara  a quase nada só para conseguir transpor o ínfimo espaço entre o portão de ferro e o chão. Passara com facilidade e habilidade de bicho larápio e esfomeado. Quão infinda era a sua fome. Pois se apresentava numa inanição esquelética de mendigo terminal.
Na rede estava, na rede permaneci. Brincava com  nosso pequerrucho. E ao mesmo tempo refletia...
“A fome cega”.
Yrla, desesperada e assustada, me chamava com aflição para pegar o homem que, àquelas tantas, já vinha sendo expulso por outro. Este, por sua vez, já se encontrava no latão e se fizera dono do lixo primeiro. Isto é, por insistência também da fome que corroía seu estômago. Adotara o lixo como patrimônio exclusivamente seu e de mais ninguém.           
O dono do latão, por lógica e por concepção da própria natureza, era um  predador inato que para se alimentar teria que procurar a sua presa. Possuía, portanto, as características próprias de um antropófago na essência de sua espécie. Mas, parece que evoluiu aos extremos, a ponto de rejeitar seu alimento natural para querer, agora, se alimentar dos restos de comida deixados pela dona da casa, no depósito de detritos, à noite.
Não satisfeito com a presença do invasor - o esquelético alienígena - o dono do lixão só teria mesmo é que se defender com unhas e dentes, literalmente. Pois, que, ali era território onde se encontravam seus víveres cotidiano, sua existência. 
Sem que o invasor esperasse, outro homem saltou do muro. E, com uma habilidade gatúnica, surpreendeu o visitante desatento de fome e o fez retornar para seu lugar de origem. A rua. 
Mais uma vez, o homem é obrigado a encolher-se a nicles, de barriga num oco de vazia. Tendo que passar novamente pelo estreito  espaço do portão, só que, agora, triste e decepcionado até a alma, por faltar-lhe o pão. 
E eu, na rede, a brincar e  a pensar... 
“Lixo também é sinônimo de pão”.
      O pobre homem, retornando, passa na mesma velocidade do vulto de antes. Só que, desta vez, num grito estridente num desespero de cortar coração de qualquer humano até como o meu e o de Yrla, que ainda se encontrava à porta, a esperar por mim para expulsar o invasor. 
Sequer movi um dedo para sair de onde estava, e, ainda na rede, vi o pobre homem passar correndo, quase a chorar. Ia sendo rebocado pelo dono do lixão que também era seu irmão de víveres. 
Particularmente, ficara muito contente por não sair de minha rede para pegar aquele coitado de homem. Mas o que me deixou intrigado, apesar do insignificante vulto que vi passar, foi a impressão de ter visto rabos em ambos os homens. Longas caudas. 
Isto, foi a única coisa que pude observar de soslaio naqueles pequeninos e estranhos homens. “Mas quanta indiferença!” 
Disse Yrla a se voltar para mim, com um riso que me deixou em dúvida.



O HOMEMORCEGOMEM


         UMA decrépita Biblioteca margeada por várias mangueiras, onde raras vezes aparece alguém para estudar, apesar do espaço agradável para leitura,   termina atraindo outra espécie de animal: morcegos. Estes, atraídos pelo doce cheiro dos frutos, competem com um único leitor: Memor. Homem aposentado de meia idade que faz da leitura o seu lazer exclusivo.
Naquela época do ano a velha biblioteca é um lugar que atrai apenas os noctívagos que se abrigam durante o dia. Visto que o espaço fica sempre fechado eles se sentem seguros nas salas escuras.
Ao cair da tarde, Memor gosta de desfrutar a vida lendo bons livros de literatura, de preferência romances modernistas como de Jorge Amado e outros.
Certa vez estando a sós no seu taciturno mundo de deleitura, Memor sentiu um vento frio soprar-lhe a nuca. Um frio que lhe correu toda espinha deixando-o com os nervos a flor da pele e o coração aterrorizado, a palpitar com o súbito. Seus cabelos e pêlos dos braços arrepiados eram a denúncia do seu terror. Mas logo à sua frente, descobriu a causa de tudo aquilo. 
Era um morcego que num rasante de bicho alado, peitado e danado, fora pousar num caibro, bem à vista de Memor. Lá de cima, ficou a se balançar feito pêndulo de relógio. Como se o quisesse hipnotizar para lhe sugar o precioso líquido purpúreo de humano. 
Memor, aterrorizado, observa o animal e antes mesmo que ele decidisse o atacar novamente, toma iniciativa primeiro e vai à caça do pobre indefeso... 
De posse do único apetrecho que tinha em mãos, deu a primeira investida atirando o chinelo de couro contra a pequena criatura, que por pouco não o acertou. Porém, o morcego nada pode entender sobre aquele ataque surpresa. 
Estava tão inocente quanto o homem. Assim, como este sempre vinha à tarde ler, ele sempre fazia aquele vôo de fim de tarde. Porém, o tempo estava para chover e escurecera mais cedo. Havia se acordado para exercitar o corpo em seguida, iniciar a sua rotina de noctâmbulo. Por isso, a desgraça estava para acontecer.
Mesmo sem nada compreender, de uma coisa ele tinha certeza: tinha que escapar dos violentos ataques do enfurecido homem. E assim voou de canto a canto; voou o mais rápido que pode para não ser morto. 
Porém, a fúria do homem aumentava à medida que errava seu ataque. E mais colérico voltava para dar fim ao pobre e indefeso noctívago. Este, vendo uma brecha de  sobrevivência no telhado, deu um vôo direto e certeiro para escapar do cerco. 
Mas, quando a alguns milésimos de segundos, já atingindo a saída, sente também atingida sua asa esquerda, que cambaleando bate na parede e se estatela no chão feito pacote fofo de nada, já sem forças, sem sentidos, sem vida.  
O vitorioso homem, satisfeito por cumprir sua missão, o pegou pela asa ferida, pobre e inútil morcego, ainda quente pelo último fio de vida, o pôs dentro de um vidro com álcool para servir de exposição a centenas de leigos, ignorantes à cena cruel, como troféu de sua vitória medíocre. 
Recuperado do susto e satisfeito do embate, o enigmático homem retoma sua leitura. Está a ler um romance realista digno dos tempos Modernos, estilo Jorge Amado, em que a cena se desenvolve com o namorado sendo acariciado pela sua amada. Esta, por trás dele, passa-lhe as mãos em seus cabelos e vai lhe roçando a nuca com seus lábios cálidos de desejos. Nesta hora, leitor e personagem passam a viver uma realidade fictícia na qual o próprio leitor parece se envolver muito mais e por total. Com a cena que ler,  faz se sentir tão abstraído pela leitura inebriante e agradável. 
Memor se faz, literalmente, personagem em vida em ato em fato. Porque se sente como próprio personagem vivendo as mesmas sensações, as mesmas delícias das carícias.
Completamente absorvido pela leitura e pela realidade que o envolve, sente um suor quente escorrer-lhe no peito e, ao mesmo tempo, a cair sobre a mesa, o livro, o chão, um líquido escarlate. 
Está entorpecido pela ficção e pela realidade, procura entender se está a sonhar ou a dormir. 
Despertado daquele arrebatamento e torpor, ver com toda clareza dos seus olhos que um dia Deus lhe há de ofuscar um morcego voando satisfeito, com as mandíbulas ainda ensangüentadas; com a língua a saborear daquele doce líquido escarlate de homem. 
Era justamente a mulher do morcego que ele acabara de exterminar. 
Ensangüentado, com a vista agora a se ofuscar, tem à sua frente mais de um morcego. E ainda de posse da mesma arma da primeira vítima, procura agir mas não consegue.
Consegue, na verdade, se ver reduzindo abruptamente de tamanho. De repente sente-se um rato a rastejar sobre a mesa, a sobejar-lhe o próprio sangue, vai consumindo as páginas daquele desgraçado e maldito livro que lhe custara a vida? 
Num salto que dá de sobre a mesa, esperando cair no chão, sente-se levitar como um pássaro feliz e alegre por ter alcançado a liberdade que todo homem sonha um dia ter. 
Porém, ele não é pássaro. Não é rato. Não é homem. É a própria figura de HOMEMORCEGOMEM.             
Quando deixa a Biblioteca, encontra o mesmo Amor que o envolveu no romance que leu momentos antes. Tudo é muito confuso na sua cabeça. 
Mas fica a certeza de que o Amor que sente lhe dá uma sensação de liberdade indescritível e de eterna leveza. 
Bom, está em movimento. Porém, não consegue com clareza discernir se voa andando ou se anda voando.  



MENDAZ  INDEPENDÊNCIA


           ESTAVA a Perambular pelas ruas ermas de Natal deleitando-me do fim de tarde daquele dia mirífico porque queria sentir paz, tranqüilidade, o silêncio daquele dia de graça. Porém, era uma tarde de luz escaldante que invadia ruas e avenidas da pacata cidade. Era feriado, comemorava-se a Independência do Brasil. A nossa Independência...
A avenida infinda serpenteava na horizontal das curvas e na vertical que incidia sobre o ébano luzidio do asfalto, ocasionado pelos raios do sol. Não havia muitos carros. E, assim, tudo se fazia mais taciturno que nos dias comuns de prélio, quando as pessoas estavam em labuta. 
O “Astro-rei” honrava o nome que um dia lhe deram e, sem saber, enaltecia o da cidade que levava seu ou diziam que era dele? “Cidade do Sol”. Alheio a tudo isso, ele cintilava como todos os dias de outrora. Mas a felicidade de alguns pouquíssimos transeuntes que perambulavam podia se ver estampada em suas faces com suavidade e clareza. 
Sem a poluição sonora dos carros, sem o tumulto das pessoas, podiam-se ouvir os gorjeares de alguns pássaros da cidade: bem-te-vi, pardal, rolinha-pé-anjo. Pássaros que se acostumaram com esse meio para não serem extintos. Apesar de tudo, eles ainda continuavam sendo pássaros e seus cantos davam um ar diferente à cidade. Por isso era um dia de graça. Feriado.
Com certeza, nesse dia, Natal honrava com todas as Letras o próprio nome que levava estampado. Isto é, pela luz, pela paz, pelo vazio. As poucas pessoas que transitavam estavam livres do aperreio do dia-a-dia e pareciam irradiar felicidade igualmente aos pássaros, às ruas e, especialmente, ao dia. Bom, aquele dia extinguia toda e qualquer melancolia existente. Porque era o dia da nossa Independência. Era feriado nacional. 
Tudo era uma só felicidade, uma perene satisfação.
Eu estava certo de que aquele dia vivenciava e testemunhava, juntamente à metrópole, literalmente o Nosso Dia de Independência mais tranqüilo, mais belo, mais livre e mais mais...
Mas, a bem do veredicto, aquele dia me escondia naquela infinita alegria, naquela demorada paz, paradoxalmente, uma também escamoteada melancolia. 
A tarde se fora, a noite viera morna e solitária. O paradoxo se instaurara para negar a paz do que foi o vespertino. 
Os postes acesos, querendo imitar a luz de lucina para me proporcionar a mesma paz, sofreram um apagão generalizado e tudo se fez trevas e medo. 
O paradoxo dessa nossa maravilhosa Independência agora me era prisão. Deu-se, portanto, quando eu vi um cão, pobre e coitado vira-lata que dormitava na rua, na sarjeta, exposto ao cálido chão da noite. Ao perceber minha presença, me seguiu estrada à fora. Quis impedi-lo, mas foi impossível. Ele carecia de alimento, tão esquelético estava. Deu-me dó. Seguiu-me até minha morada.
Cheguei a casa. E como ainda faltava luz, com alguns restos de comida o alimentei e o deixei amarrado no alpendre. Pus um vasilhame com água e fui dormir o sono dos justos naquele dia da Independência do Brasil.
Na manhã seguinte, a empregada alvoroçada me chamava para dizer que alguém havia deixado uma criança em nosso alpendre. 
Corri para vê-la. E, para a minha triste surpresa, ela ainda estava presa à corrente e choramingava desconsoladamente.   



OIREB: O SAPECA
A Robério Cardoso da Silva


        NÃO tinha mais que sete anos de idade o pequeno Oireb. Era um menino pouco comum aos que moravam ali, naquele povarejo de nome Galo. Oireb distinguia-se dos seus amigos porque era muito brincalhão, criativo, inteligente. Tinha tendência a ser artista, de preferência na linha do humor, um piadista. Era justamente por isso que ele se destacava dos demais, além de sua esperteza infantil. De tudo ele procurava um jeito para fazer gozação jocosa com as pessoas. Poucas eram as que não gostavam de suas brincadeiras, mesmo assim o admiravam pelo talento.
         O tempo passava e Oireb, na medida que ia crescendo, convencia as pessoas da sua habilidade e proeza, de seu real talento de contador de piadas alegres e inteligentes. 
Na escola, por exemplo, seus amigos gostavam de ouvir suas histórias no recreio, muitas delas inventadas e tiradas da  própria cachola. E a fama de contador atraía até adultos como Geremil, o zelador da escola. 
Ao fim das rápidas historietas se via no rosto dos colegas uma alegria inusitada. Geremil era quem mais tirava proveito às vezes, aparecia meio jururu e só bastava ouvir o menino que logo acabava a tristeza.  Com isso, ficava a sorrir feliz da vida, atraindo olhares curiosos de outros também adultos, bem como de alguns professores. 
          Oireb não era um aluno nota dez, mas conseguia estar entre os dez melhores da sala. Os professores, por sua vez, nunca foram de demonstrar interesses por alunos seus.  P assaram a ver Oireb de maneira diferente. Estavam a manifestar uma atenção que se fizera notória demais. Quando menos se esperava estavam a elogiá-lo ou a citá-lo como referência:
         “É um aluno muito aplicado, Oireb. Não nos dá trabalho. Sempre faz as tarefas de sala e nunca deixou de fazer as que passamos para casa. É um menino muito inteligente e terá, certamente, um bom futuro pela frente!  Agora Beril, ali é que é  menininho danado! Este, quanto ao seu futuro... eu não sei, não. Hein!...”            
         Mas se deu que um dia o inteligente, o dedicado, o aplicadíssimo, o criativo e brincalhão Oireb passou a mentir. A mentir mesmo! Passou a inventar as mentiras mais cabeludas do mundo. Porém, poucas pessoas desacreditavam que eram mentiras inventadas por ele. Todavia, passou a mentir tanto que dava até dó. 
Agora, Oireb mentia para seus pais, mentia para a professora, mentia para seus colegas e mentia para todo mundo; até para seu Raimundo passou a mentir. Oireb inventava coisas com a mesma habilidade que contava suas piadas. O pior de tudo, quase ninguém acreditava que ele fosse capaz de tamanha desarte. Poucos acreditavam que sua índole fosse escambar para aquele fim tão trágico, tão nocivo, tão vil; muitos até pensavam que, às vezes, atribuía suas mentiras a seu irmão mais velho, o qual era inocente e nada tinha a vê com o pato nem o fato.  
       Premeditada vez, Oireb declarou feriado à sua escola. E chamou aquele dia de: O Dia do Fico, ou seja, fico aqui nesse telefone e ligo para todos os meus colegas dizendo que não haverá aula hoje. 
Coincidência ou não, Oireb havia encontrado a diretora da escola no trânsito com o seu carro batido. Havia sofrido apenas uma colisão, nada grave, e tudo já estava sanado. Dona Clementina, apesar de estar com razão, ficou muito nervosa e foi levada para o hospital, mas logo voltara para casa para se recuperar do susto. 
     Era justamente disso que Oireb precisava para criar sua lorota. Inventou então que a diretora teria baixado ao hospital e não teria aula naquele dia. Tudo se deu quando ele voltava do supermercado com a empregada e viu o carro de D. Clementina envolvido numa batida. Como disse nada grave, mas oportuno para não haver aula naquele dia, nem pra ele nem pros colegas, com os quais conseguisse informar pelo telefone.
     Chegando a casa, correu ao telefone. Entrou, primeiramente, em contato com sua professora, a qual sempre apreciara suas qualidades. Porém, desconhecia a mudança radical do pequrrucho; obteve a triste notícia e ficara muito comovida lamentando o ocorrido. Quis urgentemente saber o hospital em que a diretora se encontrava para visitá-la, mas rapidamente, Oireb a convenceu de que ela passava bem e já estava em casa se recuperando do susto. Acrescentou que no dia seguinte ela estaria na escola e a professora acreditou piamente na sua história. Sabe-se que no espaço de quarenta e cinco minutos Oireb conseguiu sua tão almejada façanha: ligar para todos convencendo-os do dia do Fico. 
        O resultado é que sua professora e nenhum aluno da sua sala apareceram à escola naquele dia. Porém, D. Clementina, já recuperada do susto, apareceu e estranhou o vazio daquela sala sem aula. Um estranho vazio! 
        Mas, sabe-se também que seu pai adquiriu uma dívida enorme com a central telefônica e teve sua linha cortada por não pagar a dívida.  Por sua vez, Oireb tomou um castigo de dez dias sem vídeo game, sem televisão, sem passeio; além da suspensão, na escola, de uma semana sobre o dia do FICO.    
No Galo, como em qualquer outro povarejo que se preza, sempre haverá um Sined na vida para abrir e fechar bodegas com seu vício eterno; sempre haverá um Sined a ficar nas calçadas, na sarjeta da vida feito um morto assassinado pelo vício da cachaça. 
       Pois então, passava Oireb pela rua, bem descontraído, quando se deparou com aquela cena fantástica para uma lorota das suas. Ou seja, ele viu um monte de coisa no chão, feito um pacote humano, na figura esquisita de Sined. 
        Ainda vinha no caminho quando encontrou-se com um vizinho, era Seu Raimundo  e lhe disse: 
        - Sabe quem morreu, Seu Raimundo, ainda pouco, quando vinha por ali? Foi Sined.  
        E o vizinho surpreso: 
        - Foi mesmo, menino?! Hoje ainda ele estava lá no boteco de Xicó enchendo a cara. Já era mesmo de se esperar sua morte assim de repente! 
         Oireb e Seu Raimundo declararam a Deus a ao mundo a morte do então vivo Sined. 
       No dia seguinte, lá estava Sined no bar do Xicó, bem cedinho, a tomar sua cachaça de sempre. O bairro inteiro passou a ver Oireb com outros olhos. Agora, o julgavam o mais mentiroso dos meninos que já existiu naquela redondeza. 
Seu Raimundo, muito desgostoso com a mentira de Oireb, o repreendeu furiosamente por se passar naquela idade também por mentiroso. 
Mas Oireb, sarcástico e gozador que era, disse ao pobre  velho: 
- Puxa, Seu Raimundo! Não sei por que o senhor está tão zangado comigo. Pois, para mim, Sined já morreu a muito tempo; o problema é que se esqueceram de enterrá-lo!  
Seu Raimundo, ao invés de aumentar sua ira contra Oireb, caiu foi numa gargalhada. Em seguida, saiu dizendo: 
- Esse moleque não tem jeito mesmo, a gente quer ter raiva do desgramado mas termina se engraçando com suas lorotas. Mas que danado mais sapeca! 
Quando realmente se deu a morte de Sined, Oireb fez questão de dar notícia às pessoas do Galo. Porém, ninguém mais acreditou nele e Sined foi enterrado feito um indigente, porque ninguém foi ao seu enterro.      
         A maior e pior mentira que Oireb inventou se deu com seu próprio fim de mentiroso, porque desta vez ele foi juntamente com ela.  Sua mentira o engolia.
Deu-se que Oireb morava perto do Rio Potengi, onde se contavam muitas estórias  de peixes e jacarés gigantes, que apareciam nas grandes invernadas e que engoliam de uma só abocanhada um homem inteirinho sem deixar vestígios para não se ter prova do ocorrido. 
Estas eram estórias que segundo os mais velhos e alguns pescadores dali do povarejo costumavam contar. 
Nessa mesma visão, Oireb dando asas à sua imaginação, achou de inventar a sua grande mentira. A maior mentira do mundo.
Pois sim, sentado nas raízes de uma velha mangueira que ladeava o caminho onde a maioria das pessoas passava para ir ao Rio. Ele contava com muita seriedade a crianças, jovens, velhos e velhas a seguinte lorota: 
- Olhem, escutem-me! Não vão para o rio a essa hora, que lá existem um peixe e um jacaré enormes capazes de engolir numa abocanhada três pessoas de uma só vez. 
Todos que passavam por ali ele estava a  repetir quase a mesma coisa: 
- Olhem, escutem-me! Não vão para o rio a essa hora, que lá existem um peixe e um jacaré enormes capazes de engolir numa abocanhada cinco pessoas de uma só vez. 
E pela terceira vez ele repetiu quase nem a mesma lorota:
- Olhem, escutem-me! Não vão para o rio a essa hora, que lá existem um peixe e um jacaré enormes capazes de engolir numa abocanhada sete pessoas de uma só vez. 
A tarde passou e ele, no entanto, não a viu. Chegara às três e já passava das cinco, quase seis da tarde. Ele continuava sentado nas raízes expostas da velha mangueira. 
Oireb se cansara de tanto mentir e terminou dormindo. Tudo passou: o tempo, o povo, a hora, e nada ele viu  passar. Fora o peso da mentira. 
A tarde havia se consumido pela noite quando ele acordou. Dormira tanto que sonhara. Viu em sonho que o peixe e o jacaré haviam engolido toda aquela gente que tinha descido para o rio. Ficou muito assustado, possuído de um medo, um estranho temor que fez seu coração hesitar. Na realidade, estava muito arrependido  das mentiras que havia inventado.
         Impressionado com o sonho, Oireb estava a se sentir culpado. Então, decidiu tirar a prova do que  o incomodava. 
E, sozinho, foi em direção ao Grande Rio. O sol já havia se escondido por total e a noite surgia tranqüila. O Rio, inerte, parecia dormir após um dia agitado. Pessoas haviam pescado e se banhado nele. Agora, ele descansava na paz da sua existência líquida. 
Mas, a calmaria daquele início de noite não fazia tranqüila a alma do pequeno Oireb porque à medida que se aproximava do Grande Rio, um mau pressentimento com grande remorso lhe atordoava a consciência. Sua alma estava fragilizada. 
Estava profundamente arrependido por tudo que cometera, por se sentir culpado da morte de tanta gente inocente. Não encontrara ali, naquela calmaria de Rio, uma viva alma sequer daquela gente que desceu no fim da tarde e não voltara. Eis que, na sua consciência, todos teriam sido engolido e comido, respectivamente, pelo peixe e jacaré gigantes.    
         A noite cresceu muito rapidamente; Oireb, misteriosamente, foi abocanhado pelo silêncio das profundezas do Rio e se encantou num Peixaré. 
Agora era um menino com cauda de peixe e rosto de jacaré que de sete em sete anos reaparece no Galo, na figura de garoto querido e alegre, ou seja, a contar suas estórias e piadas; mas quando começa a mentir desaparece misteriosamente e de novo se encanta em um Peixaré. 




A VIÚVA MACHADO: A LENDA DA PAPA-FIGO


EULINDA Lucina Machado morava estranhamente no porão duma casa antiga que ficava na Cidade Alta, em Natal. Lucina era mulher muito rica, dona de muitas terras que herdara de seus pais; mas era muito esquisita que ficou conhecida como “A Viúva Machado” por quase toda cidade. Até se transformou em lenda. 
Contava-se que A Viúva Machado tinha as orelhas enormes e pelo tamanho delas teria vida longa. Na época, já ultrapassava os cem anos de vida. Porém, sua sina de rica coitada era viver isolada do mundo e das pessoas, exceto de Dona Marileon, sua criada e única companhia de todas as horas. 
A Viúva Machado sofrera uma grande decepção na sua vida quando ainda era muito jovem e bonita. Como assim contava Dona Marileon, uma negra que teria sido escrava naquele século de horror, era muito velha mas nunca revelou a sua idade para ninguém. Nem a família sabia do seu registro de nascimento. Sabe-se, portanto, que tinha cara de centenária e orelhas grandes como as da Viúva Machado, a quem ela prestava serviço há sete, talvez há oito décadas ou mais. Não se sabe ao certo quantas. Sabe-se portanto, que ela era tão velha quanto sua “horripilante” patroa.
Dona Marileon morava no povarejo do Galo, às margens da linha férrea Natal/Macau, acompanhada de seu filho Adud, pescador muito respeitado. Apesar da idade avançada de corcunda envergada feito pau de galão d’água, dona Marileon nunca deixou de trabalhar de enxada limpando o terreiro de casa, onde a cada quinze dias a erva daninha, insistentemente, num ervanço cruel invadindo todo  quintal. Com a cabeça quase a tocar nos pés não tinha dificuldades de ir, com as próprias mãos, afastando e juntando os montes de matos aparados com uma parcimônia taciturna de senil. Eis que seu ofício era parte da sua existência. Um estímulo de vida. O trabalho árduo e cruel num sol escaldante da manhã. Um gesticular taciturno de quem está sempre a conversar com Deus, entendido pelos mais novos geralmente como caduquice ou coisa de velho. Que nada! Sapiência própria de senil na filosofia do antes consigo mesma do que mal acompanhada, a exercitar o “conhece-te a ti mesmo”, socrático. Sempre a monologar, interiormente, como numa reza lenta e demorada de terço de maio.
  Contou D. Marileon, certa vez, ao Sr. Oivatum a verdadeira história plangente de Dona Eulinda Lucina Machado, sua patroa:
“Pois é, meu filho, a menina Eulinda casara-se ainda muito jovem. Tinha, talvez, treze anos se não me falha a memória de minha caduquice, quando um homem muito rico a levou de casa para o altar. Era a única filha de D. Benelinda,  que muito chorou quando viu partir sua única riqueza, sua dádiva de Deus, a pequena Eulinda. Nessa época, fins do século séc xix, foi o casamento mais comentado na província potiguar. Natal tornara-se o centro das atenções e o Brasil inteiro se voltou para o evento ímpar que o futuro se incumbiu de transformá-lo em lenda. 
Sabe menino, até Dona Maria Leopoldina veio para o casamento como convidada de honra, especialmente para ser madrinha e veio sim, bem acompanhada de D. Pedro, seu marido. A festa durou duas semanas. Tinha tanta comida, de tudo que você imaginasse que dava gosto. Tinha música de todos os gostos para quem quisesse dançar; uma orquestra veio diretamente do Rio de Janeiro, a mando de Dona Leopoldina. Eu tinha treze anos, na época, e minha mãe cuidava com muito zelo da senhorinha Dona Eulinda. Nesse dia, nós comemos e dançamos para valer. 
A senhorinha, Dona Eulinda,  era uma menina muito boa. Não se incomodava com seus criados. Deixava a gente bem à vontade. Pela sua iniciativa vieram negros até de outras fazendas vizinhas só para ajudar na festança. Menino, você tinha que ver como a senhorinha estava bonita. Se a danada já era bonita ficou uma princesa de conto de fada. Uma Cinderela ao lado de seu príncipe encantado, que também não deixava de ser um rapaz muito bonito. 
Terminada a grande festa, os recém-casados partiram para a lua-de-mel numa bela carruagem que parecia de cristal a reluzir os raios do sol da manhã. Dias depois a desgraça se deu. 
Voltavam da lua-de-mel e a carruagem caiu num precipício. O Príncipe teve morte instantânea e a senhorinha Dona Eulinda, por milagre de Deus, escapou sem nenhum arranhãozinho. Daí, então, a coitadinha entrou naquele porão e nunca mais quis saber de ninguém. Não mais saiu de lá para nada.
Minha mãe morreu. Aí eu passei a cuidar da pequena Eulinda, que o povo passou a chamar de “Viúva Machado” e inventar as histórias mais horríveis contra a pobrezinha. 
Povo mal agradecido, meu Deus! Até hoje cuido da menina e não entendo como foram inventar essa história tão absurda!”
Desse fato então, quando era noite de lua cheia, os meninos para se divertirem arranjavam diversas formas de brincadeiras. Brincavam de esconde-esconde, assobia-meu-canário,  bandeirinha. Mas do que eles mais gostavam mesmo eram das estórias de Trancoso que Mãe Amélia contava sentada no batente da porta. A meninada dispersa pela calçada no terreiro enluarado a ouvi-la. 
Mãe Amélia contava muitas estórias. Começava pela Moura-torta, entrava pela Madrasta que enterrou a menina viva no capinzal. Depois, ia para a do Lobisomem, para a do Batatão-de-fogo e terminava com a estória da Viúva Machado, a mais esperada pela garotada. 
Era a história de uma mulher muita velha que vivia num porão e, para prolongar a sua idade, que já passava dos cem, tinha que comer fígado de criança. Todo menino que ouvia a estória da Viúva Machado tinha medo. Todos sofriam um frio dos pés à cabeça que o corpo se arrepiava inteirinho. Tudo isso só porque morava bem perto dali dona Marileon. 
Eles viam na pobre velha centenária a figura assombrosa da Viúva Machado só porque a coitada havia trabalhado para ela como criada. Para muitos deles não era conversa, não. A velha tinha algo de muito estranho mesmo. 
Aquilo que mãe Amélia contava não era estória de Trancoso não, era de verdade mesmo. Pois, Dona Marileon todo final de semana tinha uma viagem a fazer. Era uma viagem misteriosa. Para onde uma mulher naquela idade ia sozinha todo final de semana? Eis aí o grande enigma. Certo  dia, um homem a viu na Cidade Alta, indo para o antigo casarão da Viúva Machado. Ela sempre andava com um saco nas costas. Será que aquele saco não ia cheio de figo de menino? Hein!?  
Para os meninos a estória da Viúva Machado era a história de Trancoso mais real que podia existir entre todas as que já ouviram contar. Isso, só por causa da proximidade de dona Marileon. 
Quando na verdade, em verdade, a velha centenária era um poço de taciturnidade. Mas, era exatamente esse silêncio de múmia, de isolamento de velho que assustava a maioria das crianças da Siqueira Campos. Mormente, quando elas passavam pela linha e a viam limpando o terreiro com uma enxada, de corcunda quase enfincada no chão, diziam uns para os outros:
“Olha, ela está ali disfarçada. Querendo pegar um de nós. Um besta qualquer e levar para a Viúva Machado comer o figo da gente”.
Quando a velha, despercebida de tudo que se passava ao seu redor, levantava a vista para olhar o tempo... A molecada assustadíssima via em qualquer movimento dela, uma ameaça. Com isso, saíam numa boca-de-fogo pela linha afora que nem pedra de baladeira os pegava. 
A velha Marileon não era de muita conversa. Poucas eram as pessoas com quem ela dividia seu falatório. Seu  Oivatum, pai de Ossiab, era o único privilegiado - pode se dizer - que ela admitia tirar um pouquinho de prosa de quando em vez. Mas não era de se alongar muito na conversa. Só conversava o necessário que fosse do seu interesse. 
Certa vez, seu Oivatum acreditando na intimidade que tinha com a velha quis saber a idade dela. No entanto, ela saiu com esta: 
“Mas que cabimento! Onde já se viu uma coisa dessa”. 
Aconteceu que a velha não gostou da pergunta do seu Oivatum e saiu com mais de sete facas na ponta da língua:
“Me respeite, menino. Onde já se viu uma velha como eu ter que falar minha idade? Eu tenho idade de ser a sua escancha vó. Quanto mais sua vó ou sua mãe. Onde já se viu isso?!”
Dona Marileon era de uma época em que gente da sua idade não se permitia ficar de intimidade ou de conversa com gente mais nova. Criança não podia ouvir conversa de adulto. 
“Vai lá para dentro menino, a gente está conversando!” 
Era assim. Seu Oivatum, percebendo que ela não gostara da brincadeira, procurou logo mudar de conversa. Dona Marileon conversava mas quando via que estava se estendendo demais, mandava-o embora sem nenhum constrangimento. Mesmo assim, ele se dava muito bem com ela. 
Sabendo-se que um dia toda e qualquer pedra cederá à constância da água sobre si, para dar passagem a seu fio. Assim, se deu com D. Marileon, que na verdade não gostava de criança. Porém, um dia abriu as portas para o menino Ossiab e todo o medo e assombração que se tinha com relação a dona Marileon foi desfeito. 
Eis que Ossiab vivia para todos daquele povarejo que dependiam da sua preciosa água de galão. Mas, nunca havia botado água para D. Marileon. Pois sim, Ossiab tremeu quando Adud lhe pediu para botar água para a sua mãe. E como todos os meninos, ele também tinha medo da velha. Porque Ossiab era dos meninos que, à noite, se assombrava com a Viúva Machado. E, mesmo se pelando de medo, foi levar água para D. Marileon. Eis a surpresa que teve: ela assim que o viu, pequeno, franzino quase desnutrido carregando todo aquele peso no lombo, disse com espanto:
“Meu Deus, um menino desse tamanho, nessa idade, carregando um peso danado desse. Será que Oivatum não tá vendo isso. Coitadinho! Meu filho venha aqui, mas tome cuidado. Me ajude a levar água para minha quartinha, lá pro quarto. Cuidado com o batente. Olha o tamborete. Adud não tem mesmo vergonha, sempre deixa esse tamborete aqui, em tempo da gente cair e se machucar”.
 Ossiab não dava um suspiro, muito menos uma palavra. A velha que não era muito de falar com as pessoas, falava. Ossiab por sua vez não dizia nada. Estava ali, mas era como se não estivesse.  Ela continuava a falar sozinha como sempre. Ele, mudo, calado. A cada favor que a velha lhe  pedia seria o momento crucial. “Agora ela me pega e adeus o meu figuinho!”. Lembrava-se do papa-figo. E este não era homem como o pessoal contava. Era uma mulher. Estava ali, na figura de D. Marileon. Levava a lata d’água para o quarto escuro e ela atrás dele, num passo trôpego. Ali, dentro do quarto - matutava consigo -, aconteceria a desgraça.
Adud chegou pela porta da frente e uma luz vinda da rua iluminou casa a dentro. A alma de Ossiab apaziguou-se, tão logo  estava retornando para cozinha, com um ar realmente de vida. Tudo se iluminara com a presença de Adud. 
A velha, satisfeita, enfiou a mão no bolso do seu vestido de rendas estampado - Ossiab ainda de olhos arregalados -, tirou uma moeda de cinqüenta centavos e pagou o serviço. Ele se sentira o mais feliz dos meninos daquele povarejo. Irradiante de alegria, saiu confirmando que voltaria sem falta na manhã seguinte. Já a caminho da cacimba deu o seu grito de satisfação e vitória: 
“Legaaaal, ela me pagou à vista!”
Ossiab se fez amigo da Viúva Machado e de D. Marileon que sempre lhe pagou e lhe deu de presente sabonetes bem cheirosinhos.



O BOSQUE ENCANTADO
Aos moradores de Belém 


            TAVIK e Mauryk estavam a passear pelo Bosque Encantado. Era domingo, fazia uma tarde alegre e tranqüila, digna de se tomar sorvete, comer pipoca e de uma boa diversão. Era justamente o que eles estavam a viver intensamente. 
Já havia percorrido quase todos os pontos de atração do Bosque e aproximava a hora para visita encerrar. Porém, existia um lugar que eles tinham deixado para o final do passeio: a caverna. Esta, demasiadamente escura e de aspecto assustador chegava a dar calafrios. Mesmo assim eles decidiram entrar.
O sol aos poucos desaparecia, cerrava-se lentamente por detrás das samaumeiras gigantes e de outras centenas de árvores nativamente frondosas.
Tavyk foi o primeiro a entrar na caverna e a sentir algo estranho soprar-lhe as costas. Era como se alguém estivesse querendo o assustar.
Em seguida, foi a vez de Mauryk que também sentiu o mesmo vento frio adentrar-lhe a espinha. 
De repente, uma enorme sombra, uma nuvem negra vinha do teto da caverna na direção deles, causando um barulho dos infernos.
Assustados, saíram a correr pelas ruas do Bosque Encantado. Corriam desesperados em direção às muralhas do Castelo. 
Chegarem ao Castelo, subiram a escada onde se encontrava o lobo, o guardião da floresta. Quando o viram deitado, de olhar atento para o sem-fim da mata, como um eterno sentinela de chumbo, ficaram ainda mais assustados. 
Todavia, o lobo era um animal camarada. Não fazia mal a ninguém. Só sabia mesmo ser bondoso e guardar as matas e as flores daquela Amazônia.
  Mauryk e Tavyk quando se deram conta estavam no Castelo ao lado do lobo que dizia aperreado: 
“Vamos crianças, subam rapidamente que os tenho de tirar daqui. Não é mais hora de crianças passearem no Bosque Encantado.”
Logo, logo, o lobo os tirou dali, fugindo daquela coisa horrível e estranha  que ainda os seguia desde a caverna. 
O lobo fugia daquela coisa horripilante, correndo o quanto podia para deixar os garotos livres. Corria tanto que parecia voar. E os dois meninos sobre ele, seguravam seus pêlos para não cair. 
Parecia que estavam a fazer uma retrospectiva de tudo que haviam visitado no Bosque. É que o lobo, acostumado a ficar sobre as muralhas do castelo, não tinha o hábito de passear naquelas ruas, principalmente àquela hora da tarde. Não conseguia mesmo era encontrar a saída principal.  
Passaram pela ponte onde Iara protegia os rios e lagos do Bosque. Naquela hora, ela tomava o banho da tardinha acompanhada de tambaquis e tartarugas. Ela costumava deixar as visitas saírem para ir se banhar.
Porém, se soubesse que eram as crianças que iam nas costas do lobo, teria morrido de vergonha e, talvez, nunca mais aparecesse àquela hora para o banho. 
Pela velocidade do lobo, Iara procurou reconhecer quem estava sobre suas costas, mas felizmente não identificou. Mesmo assim, achou muito estranho o lobo naquela velocidade, àquela hora da noite. Chegou a pensar que fosse o saci aprontando mais uma das suas travessuras, ou “a caipora trocara o dorso do porco-do-mato pelo do lobo?” - indagava, repleta de dúvidas, a mãe-d’água.
Contudo, o lobo percebeu que Iara estava ali a se banhar, expondo seus lindos cabelos longos como se fossem a toalha do mais precioso ébano da floresta, a envolver seu lindo corpo nu de mãe-d’água. Então, fez de tudo para que ela não percebesse que eram as crianças que estava levando. Por isso, passou veloz como um vulto.  
O guardião queria salvar os meninos daquele monstro. Tinha pressa para tirá-los dali e retornar rapidamente para seu posto. A sua responsabilidade era observar parte superior da floresta. Do alto dava uma ótima visão de toda a mata. Por isso corria que nem bicho assustado quando foge do predador. Precisava assumir seu posto.
Os meninos, sem querer, continuavam a retrospectiva. 
Após a ponte onde estava Iara, seguiram para o lago do peixe-boi e o do pirarucu. Num salto, estavam na morada dos peixes elétricos, os poraquês; passando pelo aquário das piranhas e de outras espécies de peixes do Amazonas. Em seguida, estavam no parque infantil, passando pelo local das tartarugas que conviviam harmoniosamente entre vários jacarés e pela área dos macacos pregos, das araras, papagaios e periquitos. 
A velocidade do lobo deixava cada vez mais assustada quase toda a bicharada do Bosque e uma algazarra de papagaios, araras, macacos, cigarras, grilos e outros animais da floresta invadia aquele mundo, fazendo daquele final de tarde de domingo um dia muito diferente para todos os viventes do Bosque Encantado, sem saber o que realmente estava acontecendo. 
O problema era que o lobo querendo ajudar as crianças, corria feito um louco aos quatro cantos do bosque fazendo um barulho dos infernos. E o pior: sem encontrar a saída. 
Tudo porque jamais havia saído de seu lugar. Esta era a primeira vez que fazia aquilo, apenas na intenção de ajudar as crianças.
Mauryk e Tavyk tinham emudecido com o susto e bem que tentaram por várias vezes mostrar o caminho para o lobo, mas não saía nada. Nenhum deles teve coragem de olhar para trás e vê realmente o que os seguia desde que saíram daquela caverna. O vento frio continuava a soprar suas costas horrivelmente.
Nem eles nem o lobo ousavam olhar para trás. 
Depois de muito tempo, apesar de estarem próximos da saída, foi que a encontraram, quando Tavyk ainda com dificuldades gritou para o lobo:
- “Seu lobo! Seu lobo! É por ali o caminho. Lá está a saída.”
Aí, foi que o lobo se lembrou de que tinha dois amigos que também eram guardiões da floresta, responsáveis de guardar toda parte terrena que ficava justamente na entrada do Bosque Encantado. 
Eram dois homens que as crianças os temiam demasiadamente e, àquela hora, que já passava das seis horas da noite, tinham como principal atração aprontar e  pregar os sustos mais horripilantes nas crianças, que ainda permaneciam no Bosque Encantado. 
Foi quando os guardiões sentiram o cheiro e perceberam os meninos sobre as costas do lobo. Se preparavam para  pregar o susto merecido a eles. 
Mas o lobo ainda mais esperto, já sabendo da intenção dos seus amigos, fincou os pés a correr mais e mais em direção aos dois homens; pediu para que os garotos se segurassem com firmeza, pois iria saltar sobre os dois “intrusos”. 
Foi se aproximando, se aproximando e nada deles saírem da frente. Aí, há uns três metros dos dois, o lobo deu um salto tão alto, que os homenzinhos da floresta não viram nem rastro nem sentiram cheiro das crianças passando sobre suas cabeças. 
E o lobo, já no portão de saída do Bosque Encantado, deixou os meninos à luz de neom que vinha dos postes e das lojas, doutro lado da rua. 
Tavyk e Mauryk, recobrado a consciência, agora bem mais tranqüilos, graças à claridade que fazia, criaram coragem e se voltaram a olhar para dentro do Bosque Encantando. 
O que viram? A imensa floresta que se apresentava para eles como se fosse uma caverna gigante,   boquiaberta. Dentro da bocarra escura e assustadora, a figura horrenda do bicho enorme que os tinha seguido até ali.
Era um bicho enorme de asas abertas que voava de um canto a outro, procurando se esconder da luz que vinha da rua para não ofuscar seus olhos de noctívago. Era o dono da caverna: o velho morcegão. 
Os meninos ainda conseguiram ver o lobo conversando com três homenzinhos que mais pareciam com anões do que com gente grande. Certamente não eram os anões da Branca de Neve. Todavia, eram homens protetores da Fauna e da Flora brasileira, mormente daquele oásis de Bosque Encantado em pleno pulmão de Belém. 
Porém, o estranho em tudo aquilo era que os três homens que eles viram eram personagens de alguma história que já haviam lido ou escutado, mas que não conseguiam se lembrar deles. 
Eis que, um dos homens só tinha uma perna; o outro tinha duas, mas com os pés voltados para trás; e o terceiro, mais estranho ainda que todos, tinha três pernas.
Quando de repente, os pais dos meninos apareceram e um deles perguntou:
“Gostaram do passeio pelo Bosque Encantado?”
Sem darem respostas, Mauryk e Tavyk se entreolharam e começaram a sorrir.
Era o primeiro dia de aula depois de umas longas férias pelo Norte do país. Tavinho e Mauricinho estavam sorrindo e ainda dormiam, quando sua mãe os acordou para tomarem banho e escovar os dentes.



A LENDA DO BATATÃO-DE-FOGO
Aos pescadores de Igapó e de Redinha


           CONTA-SE que dois pescadores muito experientes convidaram um amigo para pescar. O amigo não tinha nem idéia como seria uma pescaria à noite. Achava muito curioso aqueles homens saírem no fenecer da tarde e só retornarem no alvorecer do dia seguinte. Tinha uma vontade enorme de registrar in loco aquela realidade. Quem sabe, num livro talvez, a noite-a-noite daqueles homens. 
Até que chegou o dia. Aliás, a noite. E lá se foi o jornalista feliz da vida. Mas, há de se dizer a verdade: foi feliz sim, mas com um medo peitado. 
Enquanto os dois pescadores se vestiram com roupas simples de rotina, o amigo com excesso de prevenção se vestiu e ficou parecendo um apicultor, empacotado dos pés à cabeça. Tudo isso com receio dos maruins e das mutucas o picarem. Os amigos até riram dele, mas ele “consciente” do que iria enfrentar, apenas disse: 
“Um homem prevenido, vale por ele mesmo”. 
E lá se foi a tríade com destino ao mangue, à maré. 
A pescaria se tratava, na verdade, de uma espécie de tapagem. Por isso, eles teriam que sair de casa à boquinha da noite, antes da maré encher. Era preciso preparar e fincar as varas na lama de forma que tapasse a vala de uma margem à outra; em seguida teriam que estender a comprida rede sobre as varas, deixando-a suspensa enquanto a maré subia. Quando ela atingisse seu nível, arriariam aquele mundo de rede para ser presa com forquilhas no leito do rio. 
Quando a maré começasse a baixar, aí seria hora da pescaria - tão esperada pelo amigo - começar. Pois, ele já estava ansioso demais. 
Era trabalho árduo e demorado, mas tão natural para aqueles homens que não demonstravam cansaço algum. Enquanto o jornalista, feito um escritor Realista dos tempos modernos, bem sentado na proa da canoa, com papel e caneta nas mãos, não perdia sequer um detalhe. Registrava  tudo que via de interessante no seu relatório.   
Passava da meia-noite quando a maré começou a vazar. A rede presa por forquilhas fechava a vala de um lado a outro para encurralar todo peixe que a maré trouxera. A uma certa distância, estava o pesquisador a observar, embasbacado, por quão belo espetáculo feito por aqueles homens e acima de tudo pela própria natureza. Pois a vala estava a fervilhar de alimento, muitos peixes: carapebas, carapicu, camurupim, camarão, tainha, etc. O galucho encantado sentiu que todo esforço estava sendo compensado para aqueles humildes homens de maré. 
Realmente, os dois homens nunca viram tanto peixe assim em suas vidas. Até achavam que o amigo era um homem de muita sorte. O amigo tinha “pé quente”, diziam-se entre si. 
A noite era escura feito breu. Na outra extremidade da canoa estava uma lamparina acesa a bruxulear  pela brisa que vinha do mar. A brisa fez-se vento intenso e o foco fraco da frouxa luz da lamparina se extinguiu. 
Tudo agora se fez breu intensamente. Até a consciência do pesquisador escurecera.  Uma breve sensação mista de temor-terror-horror quis apossar-lhe a alma. Mas logo foi atenuada pela luz que viu. Viu e se agradou. Porém, tomando consciência do fato em si, percebeu que a luz emanava de dentro das águas. 
“Seria então a lamparina que não se apagara e ficara boiando?” Só que a luz vinha no contra-fluxo das águas em sua direção. “Mas como isso poderia acontecer?” Ficou hesitante porém querendo, mesmo no escuro do seu medo, registrar aquele momento transcendental. Afinal, o documentarista que se preza não poderia deixar de perder uma oportunidade daquela, e o medo seria a única coisa que não deveria existir, teria que ser controlado a todo preço.
Tudo ficou literalmente claro à sua mente quando percebeu que aquela luz não tinha nada a ver com a luz da lamparina que caíra no rio.  
Era um fogo intenso crescente e devastador a queimar mangues e, incrivelmente, a andar na superfície das águas. O pior é que ia em direção a seus amigos que, estranhamente, pareciam alheios a todo aquele inferno. 
Estavam felizes e encantados com a enorme quantidade de peixes na extensão da vala. Bem que ele tentou gritar para avisá-los do perigo iminente. Mas não conseguiu. 
A voz não saía. Ficara mudo, surdo naquele fundo de mundo. 
Porém, com um pouco de força, tranqüilidade e a consciência avivada, conseguiu abandonar a canoa e chegar à terra firme. Ainda conseguiu dá uma olhadela para trás e receou não retornar a tempo para salvar seus amigos. Assim, disparou a corrida dos desesperados; o medo o fez correr-voar no claro-escuro da madrugada feito pedra de baladeira.
O clarão da maré serviu para alumiar parte do seu caminho de desespero. Seu destino tinha rumo certo. 
No primeiro orelhão que encontrou, ligou para emergência: 193. 
E logo, logo, estava o Corpo de Bombeiros no
local do incêndio.
Passava das três da manhã e naquelas alturas, para ele, os pescadores já  estariam em cinzas. 
Então, começou o embate cruel de homens contra o fogo. Era um fogo, um incêndio como todos os outros. Porém,  os bombeiros não conseguiam combatê-lo; já haviam apagado incêndio com proporções muito maiores do que aquela. 
Todavia, passavam-se mais de trinta minutos e os resultados eram desesperadores e decepcionantes. Estavam sendo vencidos pelo ígneo monstro da maré. 
Certamente aquilo não era um fogo comum. Talvez fosse mesmo o fogo sobrenatural de que tanto falavam os moradores. 
Porém, nem o amigo nem os bombeiros quiseram dar crédito a essas coisas. Tudo não passava de superstição. Crendices do povo daquela região. 
O perscrutador entre o medo e o prazer, paradoxalmente, registrava a forma cruel e melancólica da morte dos seus amigos.  Ele também procurava registrar ipsis litteris o explícito desespero daqueles profissionais que, já exaustos, no desmedido esforço e na tentativa de dar cabo ao fogo, decidiram por chamar mais reforço pelo rádio. Pois o caminhão tanque já estava à míngua e a tragédia poderia tomar proporções mais devastadoras destruindo com isso o manguezal. 
O “amigo-escritor”, na tentativa de aliviar sua tenção displicentemente riscou um fósforo para acender o charuto. O  irrefreável e descomunal inferno se extinguiu milagrosamente de súbito. Ficando apenas, em suas mãos, a única chama moribunda de um paraíso particular em toda aquela imensidão de paz, de tranqüilidade em seu coração e nos corações dos bombeiros. 
Por fim, extasiados, sem fala e sem nada compreenderem; assistiam, incrivelmente, no atoleiro da lama aos dois homens saírem ilesos, felizes da vida entre os mangues, com sacos de estopas abarrotados de peixes e a  canoa transbordando de víveres. Isto é, ambos, alheios a toda aquela arrumação do amigo. 
E, a certa distância, um deles, aos gritos dizia:
“Bom, amigo, você é prevenido até demais. Só mesmo um caminhão para levar todo esse peixe!”
Decorrida algumas horas, o “escritor” consciente do vexame que passou pergunta para um dos pescadores que espécie de fogo era aquela. 
Ele, logicamente, rindo da cara do amigo, disse sarcasticamente:
“Era o Fogo-do-Batatão, rapaz! Não conhecia?!” 
E perguntou em seguida:
“Quem acendeu o fósforo?” 
O amigo, in-feliz, sentido-se um herói às avessas diz: 
“Fui eu!” 
Certamente, como bom e fiel escritor-documentarista, ele não omitiu essa melhor parte do seu registro. Escreveu sobre a Lenda do BATATÃO-DE-FOGO.




A MANGUEIRA DO OITO: 
A LENDA DO HOMEM-SEM-CABEÇA


             CONTA-SE que existe uma mina, ou melhor, uma botija na Mangueira do Oito. Os homens que um dia ousaram em tirá-la se deram mal. Isso foi há muito tempo. 
Dois homens muito corajosos decidiram tirar a qualquer preço aquela botija. Custasse o que custasse eles iriam arrancá-la, mesmo que para isso tivessem que valer suas próprias vidas. 
Porém, havia uma condição para se tirar a mina: teria que ser numa sexta-feira 13, de preferência à meia-noite, com a lua cheia. 
Os homens estavam decididos mesmo. Esperaram o dia, a hora e a lua. Despediram-se dos familiares, amigos e partiram para aventura. Assim como todo jovem solteiro, aventureiro que sonha por riqueza, partiram levando as ferramentas necessárias: pás, picaretas, enxadas, etc.
A lua estava no centro do céu e incidia justamente sobre o lugar em que se encontrava a fortuna. O interessante é que não se precisava de mapa. O “X” do tesouro era uma mangueira centenária em cujo tronco havia um oco assustador. A tal Mangueira do Oito.  
Estava tudo dado. Precisava-se apenas de gente corajosa. E isto era o que não faltava naqueles dois mancebos eufóricos e afoitos. Mas era justamente essa gratuidade, essa coisa dada e fácil que assustava quase todo mundo. Por isso, quase ninguém ousaria arriscar ficar rico. Isto é, até enquanto não aparecessem homens de coragem, como aqueles dois cachopos. 
 Os dois homens quando viram o local da mina riram da felicidade. Tudo estava tão claro que parecia dia. Só precisavam cavar e dentro de algumas horas estariam ricos. 
Começaram o trabalho. À medida que um se cansava, revezava com o outro. E assim foram até tocarem em alguma coisa fofa, como se fosse a tampa de um baú daqueles bem antigo. 
Ambos se entreolharam e dobraram as gargalhadas noite a dentro. Abraçaram-se e pularam de alegria entoando um canto: 
“Estamos ricos! Estamos ricos!...” 
Bom, estavam a contar vantagem antes demais. Ou seja, antes do tempo sem medirem o que vinha pela frente.
Quando realmente retiraram a areia da tampa do baú, perceberam que havia alguma coisa estranha desenhada. Era a figura de duas serpentes em forma de cruz e no meio desta, uma caveira com duas armas em “X”. Logo abaixo, um escrito dizendo: 
“Parabéns! Vocês conseguiram a primeira parte e para chegarem à outra alguém terá que morrer.” 
Os dois se entreolharam sério, num silêncio de morte. Como se dissessem um para outro: 
“É você quem vai morrer, eu não!”    
Ambos já se encontravam armados, um ao lado do outro dentro do buraco. Um com a pá e o outro com a picareta. E num silêncio cauteloso decidiram abrir juntos o baú. 
O que estava de posse da picareta decidiu destruir o cadeado velho e enferrujado; o da pá ergueu a tampa e, de súbito, numa rapidez relâmpago, cada um pegou uma das duas armas que estava dentro do velho baú. 
Eram duas velhas garruchas de fogo. Eles saltaram do buraco e ao mesmo instante se ouviram os estampidos das armas correrem mundo afora. As duas serpentes haviam agarrado, num bote certeiro a perna de cada um deles. Os tiros serviram para dar fim às duas serpentes. Eram duas balas em cada arma, agora só restava uma para cada. E essa é que iria decidir o vitorioso num duelo. Sim, num duelo mortal. 
Tudo foi decidido em questão de segundos. 
Eram dois jovens saudáveis, espertos, rápidos e vivazes. Mas muito ambiciosos.
A lua era a única testemunha daquele desatino. Alumiava a vida iminente daqueles dois jovens. Estava tão dia aquela noite quase madrugada que ambos viam-se nos olhos dos olhos um do outro. Não tiveram chance de atirar. Esperavam apenas por uma oportunidade. Um vacilo. Um piscar de olhos apenas seria fatal, e tudo estaria decidido. 
Só foi a lua não mais querer servir de testemunha que eles decidiram o duelo. Quando ela reapareceu, estava estendido no chão um dos jovens com uma bala no coração. O outro sofrera um tiro de raspão no peito esquerdo.
O jovem vitorioso, sedento de riqueza, dá o seu último sorriso de felicidade e diz: 
“Agora a riqueza desse baú será só minha. Só minha! Eu estou rico! estou rico! rico! rico!”
Desceu o barranco e recomeçou o trabalho. Agora, sozinho! 
Retirou o baú para fora e percebeu que existia um outro por baixo. Com muito pouco esforço conseguiu puxá-lo também. 
Aí, viu que sobre a tampa do baú estava a figura de outra caveira. Ficou assustado, mas o desejo pela riqueza o fez de tudo esquecer. 
Quebrou o cadeado e quando abriu o baú seus olhos se ofuscaram com o brilho das pedras preciosas ajudado pela luz da lua que agora irradiava a última luz de um moribundo. Existiam também medalhas de ouro, correntes, rubis, diamantes e muitas moedas.
Tudo isso acontecendo e o jovem com as costas viradas para o oco escuro no troco da Mangueira do Oito. Sem que ele esperasse, justamente daquele oco saiu uma caveira com uma foice tão afiada que brilhava à luz da lua, e numa rapidez de luz:
“Tiiisst”.  Decepou-lhe a cabeça. 
Nesse exato instante, o homem-sem-cabeça, feito um tresloucado, saiu correndo pelo mundo afora dizendo, num grito horripilante:
“Eu estou rico! Estou rico! rico! rico!” 

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