O Menino de Maré
O Menino de Maré
Este vive a canoar
Nas águas do Rio Grande
Que desembocam no mar
Esse Rio Potengi
É nosso índio Poti
Donde emergiu potiguar.
O Menino de Maré
Toma banho na Camboa
Lança rede e tarrafa
Singra no mar a canoa
Pesca cangulo e xaréu
E abarrota o batel
De tudo que é coisa boa!
O Menino de Maré
Faz seus versos com amor
Astro-rei que nasce aqui,
É quão belo ao se pôr!
Canta à luz do luar
Adentra o infindo mar
Como um velho trovador.
O Menino de Maré
Versejar a nota Dó
No Canto do Mangue, Roca
E também no Igapó
Canta na banda de lá
Toca na banda de cá
Sempre numa nota só!
M. C. Garcia – 11/01/2009
um -O Menino de
Maré
O trisavô de o menino de
maré, seu escancha avô – como dizia a minha avó –, fora um pescador muito
respeitado na tranqüila comunidade do Galo. Seu bisavô, que parecia muito com
Ossiab, viveu a vida inteira a pegar caranguejo. Já o seu avô era um assíduo
pegador de goiamum. E seu pai, como não podia deixar de ser - para confirmar a
tradição - fora um homem muito experiente na pegada de aratu.
Seu Ossiav, como
era chamado seu pai, fora o melhor e mais respeitado pegador de aratu da
redondeza. Conhecedor das técnicas e
artimanhas desse ofício, muitos por ali o admiravam e o consideravam o maior.
Era um homem feliz, que dava a vida por
aqueles bichinhos - vermelho, preto e branco - rápidos e espertos. Era do que
ele sobrevivia. Com uma lata de querosene, de vinte litros, presa a um arame
que servia de alça para sustentação; uma vara de meio metro e, na ponta dela,
um cordão de mais ou menos um metro, tendo na sua ponta uma isca, de
preferência carne-seca; um vidrinho com querosene, esse líquido é um santo
remédio para se evitar mutuca e maruim,
quando passado no corpo. O maior inferno
de quem vive da maré é ter que enfrentar o maruim e a mutuca, pois dependendo
da maré, se esta estiver de vazante, nem
os mais experientes dos homens, como Sr. Ossiav, conseguia resistir, mas como
um guerreiro que nunca foge da batalha,
seguia impávido a sua luta
interminável numa rotina matinal, porque se assim não o fosse morrer-se-ia de
fome. É o inexorável preço de quem vive de um ofício traçado pela própria Escritura:
“Viverás do pão do teu suor”. Árduo, mesmo, era o caminho que se tinha de
trilhar até chegar ao lugar desejado; caminho este de uma verdadeira tortura
que poucos homens arriscariam em fazer para chegar até lá. Mas eis uma
justificativa que faz do rude e do sábio um mesmo ser, isto é, ao chegar a um
mesmo destino, pelo adágio popular de: “após a bonança vem a tempestade”.
Porém, Sr. Ossiav tinha sua recompensa.
O lugar distante e de difícil acesso era uma região privilegiada, onde existiam
os mais bonitos aratus. Era um manguezal fechado, exclusivo, que a
natureza reservara das mãos assassinas
dos dendroclastas; um lugar para poucos. E só os mais fortes é que conseguiam
chegar ali; teriam todos eles a responsabilidade de cuidar e zelar por aquele
santuário ecológico. Manguinhos era o seu nome, dado pelos próprios pescadores.
Atravessava-se
uma extensa área de lama que dava além das canelas. Entre raízes altas e
mangues frondosos o pescador tinha que, sobre elas, de lata e isca em punhos,
feito malabarista de circo em trapézio, transpor o caminho tortuoso e perigoso;
ao chegar, escolhe-se a raiz mais próspera de aratu. Senta-se. E com um ramo de
mangue na mão esquerda e na outra a vara com a isca; se pega então aí, os
maiores e os mais bonitos dos aratus. Além do galho, que serve para atrair a
atenção dos aratus, ao bater nas raízes, à medida que as folhas caem na lama,
existe também o assobio que atrai os aratus de cascos ébanos, pernas escarlates
e patas brancas que brilham no reflexo do sol que entra pelas brechas do mangue
frondoso; e uma luz fantástica ilumina, também, o território do pescador.
Dentro de pouco tempo a lata, que se encontrava rodeada de crustáceo, fica abarrotada de aratus.
Então, é hora de sair correndo,
para entregar ao dono do restaurante a encomenda e voltar, rapidamente, a mais
uma pegada de aratu. Seu Ossiav fazia isso três, quatro vezes ao dia. E, aquele
lugar de difícil acesso, não mais lhe assustava. Nada o impedia de fazer rotineiramente o seu
trajeto, pois, fazia com amor e muita determinação.
Seu Ossiav
morrera com dignidade aos vinte e quatro anos de idade. Certa vez, quando
retornava do seu glorioso trabalho, escorregara e caíra sobre uma raiz
carregada de ostra, esta lhe acertara em cheio a veia da perna; sem ninguém
para lhe socorrer, chegou em casa desfalecido pelo sangue que perdera. Fora uma semana de aperreio aquela. A perna
latejava demais e não parava de marejar. O corte se abria e fechava quando a
maré secava e enchia respectivamente. Ensinaram-lhe o pó da ostra ralada para
botar no corte da ferida - um santo remédio, que fechou a ferida num piscar de
olhos - porém, não lhe trouxe o sangue de volta, pois ficara anêmico demais.
Naquela mesma semana, Ossiab ficara órfão e sua mãe viúva.
Contudo, o
pequeno Ossiab se tornara um verdadeiro pescador e um respeitável pegador de
caranguejo, de goiamum, de aratu, e de siri. Abraçava, portanto, a todos os
ofícios de seus ancestrais e adquirira, por si só, ou por força da tradição, o
ofício de pegar siri. Comungava, finalmente, com a mesma sina dos seus
ancestrais, de forma inata e intrínseca, ironicamente, no rigor da sua geração.
E Ossiab criara um estilo próprio de como subtrair as coisas do mar e da maré,
isto é, com muito zelo e com sabedoria.
Passaram-se
geração e mais gerações... De monotonia, rotina, solidão... Era a sua vida,
porque no íntimo, no fundo vivia a sofreguidão do espírito; e o seu âmago, num
silêncio profundo a martelar coisas e mais coisas; eram os dissabores latentes
daquela profissão que o fazia parecer viver sem razão... Sem missão... A
trabalhar horas e mais horas a fio sem nunca questionar a vida de pescador
eterno. Certa vez, a sua alma se revestiu de um arrebatamento maravilhoso e o
fez mergulhar num mar de paciência e
calmaria; pois, a sua consciência parecia entrar em harmonia com seu coração e,
assim, se fez reluzir o espírito da reflexão... E veio, então, o sonho juntamente com o desejo de mudança,
e questionou profundamente o seu
pretérito.
Um povarejo pobre
era o Galo, que recebeu esse nome pelos próprios moradores, só porque existia
por ali num sítio, uma grande casa antiga de alpendres, com um galo de bronze sobre o telhado, que de longe,
de muito longe mesmo, se via aquele bicho todo imponente, à sua frente, bem na
pontinha onde se formava a cumeeira do
velho casarão. Lugarzinho que não passava de uma comunidade de pescadores a alguns
metros do Rio Potengi, à margem da linha do trem. O número de moradores se
chegasse a quinhentos era muito. Um povo simples que vivia, a sua maioria, das
coisas do mar e da maré. Como fora o exemplo do pequeno Ossiab que passo
a contar-lhe agora.
O menino de maré morava com a mãe a qual
dependia muito dele. Por isso, levantava cedinho para trabalhar. Perdeu o pai
quando ainda tinha oito anos de idade. Era a única riqueza que a sua mãe
possuía verdadeiramente, o seu pequerrucho, ainda tão novinho, sem pai. Pobre
coitado!
Quando o ano
começava e os três
primeiros meses vinham, as
marés pareciam ficar muito mais cheias que o restante dos meses, como acontece até hoje.
Nessas marés, Ossiab e outros meninos achavam era bom. O banho era mais
gostoso. As maria-farinhas ovadas e os caranguejos ficavam presos no
capim-navalha. Muita gente enchia baldes
e latas desses crustáceos, facilmente. Os mais velhos diziam que era por causa
da lua cheia - a força dela; mas todos os meses tinha lua cheia, outrossim, as
marés não, elas não eram tão cheias quanto as de janeiro, fevereiro e março,
nem tinha caranguejo nem maria-farinha para o povo pegar.
Taciturno, o
pequeno Ossiab assistia a tudo aquilo, indignado. Nunca viu com bons olhos
aquele massacre. Todos os anos era a mesma coisa. E ninguém fazia nada por
aqueles pobres e indefesos caranguejos.
Ficava enfurecido, enfezado só em ver a falta de escrúpulos dos homens
que insaciavelmente pegavam, matavam, pisoteavam os bichinhos. Xingavam-se uns
aos outros, eram os homens em toda a sua essência; e brigavam por ambição, mais
uma das suas fortes características; com vasilhas abarrotadas, ali estavam os
crustáceos mutilados, esmagados,
mortos... Quão incomensurável era a revolta de o menino de maré, sendo
ele, um perito em pegar as coisas do mar; sabia que naqueles meses não se podia
pegar nem se comer caranguejo. Era o período para procriação dos
crustáceos; e toda a sua família sabia
disso, de geração a geração, seguia isso como uma tradição. Podia se comer
qualquer outra espécie do mar, exceto caranguejo, mas, por que aqueles homens
estavam ali, a abarrotar-se de caranguejo, indiscriminadamente? Por quê? Refletia
a alma sofrida de Ossiab. Talvez, fosse
por que tudo se tornava mais fácil; era uma reca de homens insensíveis, não entendiam nada do ofício de quem vivia da
pesca; eram ignorantes, gostavam afinal de tudo nas mãos; viviam da moleza e
desconheciam o verdadeiro mistério do viver daqueles pequeninos animais.
Ossiab toma uma decisão com relação a
tudo que vinha acontecendo e, imediatamente,
decidi fazer uma viagem, uma longa viagem. A partir daquele dia se
sentira verdadeiramente, O Menino de Maré, e começou a ver o mundo de outra
maneira e com outros olhos: o da admiração, o da contemplação, o da sapiência.
E passara a ser mais cuidadoso. Partiria à casa do Mestre Essiib, o Sábio da
Camboa, um homem sapiente por excelência, dotado de um conhecimento transcendental
e, far-lhe-ia duas perguntas que a muito lhe incomodavam o espírito.
Perguntaria ao Mestre, primeiramente, sobre a vida dos caranguejos. “Por que
eles eram presas fáceis?” Em seguida, questionaria a respeito à sua geração de
pescador eterno.
Certa vez, quando
passeava pelo salgado, sozinho, a admirar as pequeninas espécies daquele lugar,
pôde ver chama-marés, tesoureiros, tamarus, unha-de-velho e outros tipos de
crustáceos tão pequeninos, que só agora a sua sensibilidade o despertara a ver
o quanto aquele lugar era sagrado. E então passou a sentir na alma o que
aquelas criaturinhas sofriam no casco
ou, com a própria vida, quando pisoteados ou esmagados pelos humanos.
dois -O Menino Artesão
Ossiab era filho único. Sua mãe, coitada, não tinha a saúde muito boa.
Apesar de nova, entre sete irmãs, parecia ser a mais velha. Vivia sob a
responsabilidade de uma delas que tinha marido funcionário Público que
trabalhava na Estrada de Ferro. Mandava-lhe mensalmente uma feirinha modéstia,
que não era muito, mas dava para ela e seu pequerrucho viverem muito bem. Aos
dez anos, Ossiab, já sentia na pele o peso da responsabilidade. Todas as
manhãs, bem cedo, ele ia buscar água. Tinha um galão feito de pau de bambu e
correntes. As latas, para carregar água, eram de querosene - vinte litros. Era
um menino pequeno, nanico, mas parrudo. Tinha pernas entroncadas, mas fortes.
Tirava o galão d’água, da cacimba para casa, num fôlego só. Suportava todo o
peso do galão no ombro esquerdo aos dez anos de idade, assim como Cristo aos
trinta e três, o da cruz. Duas viagens que fazia por dia, ele enchia a jarra, o
panelão e o pote. Esta era a sua tarefa de casa, depois, a tarefa mais árdua.
Dez, doze viagens para matar a sede do pessoal da beira da linha, no Galo. Era
como garantia a sua mixaria para ajudar a sua mãe. Terminada a tarefa de botar água era a hora
de ir para o rio, no alagadiço. Era ali,
onde ele misturava o seu ofício com o prazer de pegar goiamum.
Ossiab, sozinho, construía a sua própria
ferramenta de trabalho. Fazia ratoeiras para pegar goiamum, com muita
habilidade e técnica - e quem disse que ele, mesmo sendo criança, não tinha a
sua técnica para construir as suas próprias coisas? - eram armadilhas
eficientes. Apesar de muito pobre, isso não era problema para ele criar os seus
brinquedos ou seus instrumentos de trabalho.
Era no monturo da casa de Seu
Oivatum, o marido da sua tia, onde ele ia e arranjava as latas de óleo para as
ratoeiras. As latas tinham um valor que poucos adultos conheciam. Ossiab colhia-as
de lá e as abria ralando na parede de
cimento da bueira, que servia como ferramenta; uma perfeita ferramenta. Parecia
uma tarefa fácil, mas não era não. Exigia muita disposição e habilidade, porém,
isso era o que não faltava nele, tinha até de sobra. Para fazer as ratoeiras
era preciso ter em mãos liga de borracha de câmara de ar de bicicleta, arame
fino e grosso, tábua, prego, lata, por sinal, muitas latas. As ligas, que ele
arranjava dos restos de câmara-de-ar velha, serviam para pressionar a tampa da
ratoeira; após presas por dois furinhos na bordo laterial da lata com arame
fino; o arame grosso, ou, tira de madeira
era para o cabo que ficava pregado à tampa. Após isso, com um prego,
faz-se um furo na extremidade oposta à boca da lata, na parte lateral em que
fica o cabo, próximo ao fundo; nesse furo é onde entra o gatilho que prende o
cabo, fixo à tampa, pressionado pelas ligas de borracha. Está pronta a
armadilha. Só alguns detalhes finais. Pressiona-se a borracha mais uma vez para
o fundo da lata, para a outra extremidade intacta; se pega do cabo e, com certa
força, pressiona para prendê-lo ao gatilho. Este é o teste. Aprovado! Agora, é só esperar o dia de armar.
Para armar, segue
o mesmo procedimento do teste, ou seja, força-se o cabo para o corpo da
ratoeira, a lateral da lata, e o prende pelo gatilho. Esta ferramenta tem o
formato de um três, feita de arame fino, mas resistente para suportar a pressão
da borracha, presa por dois furos laterais, à tampa. O gatilho, que passa por
um furo na lateral, próximo ao fundo da lata, prende o cabo quando pressionado
para baixo, isto é, na parte externa; e, na parte interna da ratoeira, o
gatilho fica com a isca. Bom, quanto à isca, esta é a mais importante de tudo.
Pois serve para atrair os goiamuns. Podendo ser limão, manga, caju ou folha de
mangueira, ou de bananeira. Todas são iscas muito boas, desde que tenha cheiro
forte, para atrair as presas. Por sinal, os goiamuns têm um cheiro bem apurado,
por isso, sempre caem facilmente nas armadilhas dos meninos.
Prontas as
armadilhas, Ossiab tinha umas vinte ou
mais ratoeiras. Agora, era só partir para luta, mas antes, teria que procurar
os buracos dos bichos, para depois armar uma a uma. E tinha que ter uma boa
memória. Era um verdadeiro desafio para
se lembrar dos lugares em que cada uma ficava. Bom que fosse apenas Ossiab
naquele mundo, mas não, eram muitos outros garotos que disputavam o mesmo
espaço com ele. Aí, era onde teria que se provar quem era mesmo bom, quando se
tinha que enfrentar a concorrência desleal dos que viviam a roubar as ratoeiras
uns dos outros. Para estes larápios, tomava-se o maior cuidado. Havia de se
fazer previamente um estudo. Um lugar bem escondido. O buraco certo, de goiamum
grande. Deixava-se as ratoeiras, tão escondidinhas, tão camufladas que os
próprios donos, às vezes, se confundiam com um monte de lama ou de capim feito
propositadamente por eles mesmos. Porém, todo cuidado era pouco. Não se podia
dar chance mesmo a ninguém. Por sorte, nunca lhe roubaram nenhuma ratoeira sua,
bem que tentaram por várias vezes, mas Ossiab sempre os flagrou. Era um experto
na pegada de goiamum e estava sempre alerta e vigilante. Este era o preço de
não levarem suas ratoeiras. Poucos tinham a paciência que Ossaib tinha.
Conseguia pegar só patolão e azulão, que dava para entrar o dedo indicador na
pata grande sem prender. Mas não era fácil não. Para tudo, se exigia um esforço
peitado de grande. Para isso, Ossiab tinha que se levantar, às quatro da manhã,
ainda escuro. No alagadiço, procurava os melhores buracos. A espessura da bosta
era o tamanho do bicho. Nem sempre
buraco grande era sinal de goiamum grande.
Às vezes, buraco médio tinha cocô avantajado, aí, ali morava um grande e bonito goiamum. Fazia
isso todos os dias, antes mesmo de botar água. Os outros garotos não entendiam como ele fazia aquilo. Quando
desciam para o rio e se encontravam com Ossiab pegado no galão, nem desconfiavam da sua esperteza. Só às dez
é que Ossiab descia para o rio.
Encontrava algumas ratoeiras de cabo para cima. Estavam batidas. Era uma
felicidades daquelas bem grande, que os olhos chegavam a brilhar. E, aí, ficava
até o fim da tarde. Quando voltava para casa eram quatro cinco cordas de
goiamuns. Teria sido um dia muito bom aquele. Um excelente dia! E a mixaria estava garantida para auxiliar na
feira que a sua mãe ganhava da irmã mais velha. Os goiamuns eram colocados num
tanque. Ficavam para serem servados por um ou dois meses, com uma ração
especial: bagaço de coco, manga, caju, casca de banana. Bonitos e gordos eram vendidos quase de graça
mas garantia-se, ao menos, a farinha daquele dia.
Aos quinze anos
de idade o menino da maré adquirira as técnicas e as artimanhas de pescador.
Fazia tudo tão bem, ou melhor, quanto os seus ancestrais. Tudo vinha dos genes.
Era mesmo hereditário, não tinha como negar.
Exercia na íntegra os ofícios de seus ancestrais sem eles nunca os ter
ensinado. Aqueles bichinhos comoviam-lhe tanto a alma. Sempre se via a cometer um crime, um grande
crime contra eles. No íntimo, achava-se injusto por pegar aqueles animaizinhos
indefesos, ingênuos e tão dóceis. Achava-os diferentes dos aratus, dos siris,
dos goiamuns, até mesmo dos chama-marés e tesoureiros. Estes que, quando
ameaçados, mutilam-se as próprias patas e fogem. Já os caranguejos, estes -
coitados! -, se escondem em lugar inadequado e são presas fáceis. Qualquer
pessoa pode pegar um caranguejo, até a mais ingênua delas e sem experiência
alguma, fá-lo vítima facilmente.
Certa vez, Ossiab fez uma boa pegada de
caranguejo e não era o dia da corrida deles não. Enchera dois sacos de estopa
pela boca. Arrancara-os a braço, de
buracos profundos, em lama dura e seca, num sol de rachar as costas. Saíra, às quatro da manhã, e só ao meio dia
voltava com um saco demasiadamente pesado de cheio. Depois, voltava para pegar
o outro saco, pois era impossível ter que levar os dois de uma só vez. Ainda no
caminho, levando o primeiro saco, sentiu um remorso, um grande arrependimento.
Algo estranho invadiu-lhe o seu coração, rapidamente, retirou o saco das
costas. E, ali mesmo, no salgado, saltou todos os coitadinhos, que o chão - o
Salgado - ficou alastrado de caranguejo. Sentira-se extremamente arrependido.
Sentira-se como um seqüestrador, que retira dos lares crianças, mulheres e
homens indefesos para vendê-los. Este ofício - o de pegar caranguejo - que
tanto lhe afligia a alma fora exercido pelo seu bisavô há muito e muito tempo
atrás.
E foi a partir desse dia que Ossiab passou a sentir admiração e respeito
por esses animais. Passou, também, a defendê-los dos ataques de pessoas
ignorantes do ofício de pegar caranguejo, e, agora, os orientava como pegá-los,
na época certa. Desse dia em diante
Ossiab não mais pegou caranguejo. Aí, então, foi que decidiu partir.
três -O Sofrimento de Mãe
O albor daquele dia fora esplendoroso. Ossiab irradiava de
felicidade na mesma sintonia do dia. O baticum do seu coração cadenciava com a
natureza no canto feliz do bem-te-vi e do sibite que, lá no alto da pitombeira,
estavam em festa. Seria a despedida do
amigo que partiria para bem longe? Talvez. Era janeiro, justamente o mês em que
se dava a primeira corrida dos caranguejos.
Mês de maré cheia. Grande. Alta. Ossiab estava decidido. Daria
um fim em tudo aquilo que o seu coração pedia e a sua consciência
indicava. Só o Mestre Essiib, lhe daria as respostas das quais necessitava e
tudo estaria resolvido.
Na noite
anterior, confessara a mãe que iria viajar e ela não fora de acordo com a ideia
maluca do filho. Sabia que aquele lugar
era muito perigoso. De águas revoltas, mormente, naquela época do ano. Dona
Irecy ficara assustada com aquela decisão repentina de Ossiab. Achara que ele
não estivesse bem da cabeça, não estava a girar bem, pois estava a falar
heresia, a dizer coisa sem pé nem cabeça. Era maluquice um menino dessa idade
ter que se aventurar e fazer uma viagem daquela. Sua mãe tinha medo que ele
fosse e nunca mais voltasse. Pois, já
ouvira falar de muitas histórias. Aliás, viu muitos exemplos de homens
experientes que foram e nunca retornaram os mesmos. Muitos dos que
tentaram, não voltaram, e, os poucos que voltavam, máculas
irreversíveis ficaram: corpos e mentes insanas; pernas e braços mutiladas;
arrependidos da doideira que fizeram,
inclusive, um avô seu. Mas Dona Irecy nunca
contara ao seu filho. Sempre teve medo que despertasse no menino a mesma maluquice. E agora, se via
ante a mesma desgraça, sem poder fazer nada. Ossiab era teimoso igualmente o
bisavô. Botava uma coisa no quengo não tinha quem a tirasse, nem a sua mãe nem
ninguém. Bem que ela tentou. Contava-se: “tubarões enormes atacavam as frágeis
embarcações. Barcos à vela ou canoas eram sucumbidas pela violência da fera”. E
o menino de maré pretendia navegar numa dessas canoas, pois não existia outra
forma. Dizia-se, ainda: “um tubarão atacava com uma fúria de monstro, que se
desconfiava que aquilo fosse mesmo peixe ou uma espécie de monstro marinho”. No
íntimo a mãe entendia as intenções do jovem cachopo. Tudo tinha a ver com a
mesma história do seu avô - era o destino, a moira. O castigo era não ter
contado para o filho antes. Agora teria que pagar pelo seu silêncio.
A
contragosto arrumou as coisas do filho e botou tudo numa cesta de cipó. Com água nos olhos, botou a manta de retalho
que há mais de ano costurava; arranjou chapéu de palha; alpercatas antigas que
o marido deixara; num bisaco colocou pó
de café, açúcar, tapioca, beiju, rapadura, coco, farinha e carne-seca. Entregou
uma cabaça d’água na mão do filho e foi para o quarto. Na manhã seguinte, o menino foi se despedir da
mãe e deparou com ela ajoelhada a rezar o seu infindo terço de todas as noites.
As ave-marias e os pai-nossos enchiam o quarto escuro de paz e silêncio; o
coração do pequeno Ossiab palpitava de prazer e medo pela ansiedade. A velha
sua mãe, a partir daquele momento, passara as noites e os restos dos dias ali,
de joelhos. A orar. A rezar. E a resmungar
pelo filho desnaturado. Era a sua
riqueza que Deus lhe deixara que via sair pela porta da cozinha, mundo a fora.
Ossiab beijara-lhe e abraçara-lhe como se
lhe pedisse, em silêncio, a benção eterna. A proteção sagrada de sua mãe, uma pobre e santa mulher. E partiu.
quatro -A Viagem de Ossiab
A viagem duraria, em média, quatro meses. Era o que o menino de
maré ouvira dizer pelos mais velhos. Isto é, se a maré e o tempo o
ajudassem. A maré estava como ele
gostava. Cheia, alta, grande como a lua
que tinha tudo a ver com aquele seu gostar - era um eterno admirador de
Lucina, um romântico, um poeta. Isso, já era um bom sinal para o sucesso da sua
viagem. Dias antes arrumara a canoa e colocara bucha de coco nas frechas para
não vazar; pintara de piche o fundo e as laterais e de azul claro, o restante;
já os bancos e bordos foram pintados de branco. Tudo estava em perfeita
harmonia: o dia e a sua alegria em extasia. Encheu a canoa de apetrechos para a
viagem; a canoa, presa à corrente e cadeado no tronco de mangue, desancorava
para um mundo desconhecido. Agora, homem e barco rumam para o grande destino: a
casa do mestre Essiib, ambos a deslizarem vala a baixo e, em poucos minutos,
encontram-se com o Rio Grande, é o Potengi, que flui calmo, lento e eterno em
busca do mar, em que o homem o particularizou de praia de Redinha. Dois remos
e vela auxiliam o pequeno navegador. Tudo
que ele mesmo improvisara para a viagem; a vela era a sua grande auxiliadora,
quando cansava de remar; ainda no primeiro dia, percebeu que não iria ser fácil ter que enfrentar
aquele mar. Imenso e indomável mar, que o fazia pequeno, tão pequeno do tamanho
de nada. Começava a enfrentar as fortes ondas das praias e a sua incomensurável
violência.
O crepúsculo da
tarde, no horizonte, denunciava o quanto tinha navegado. Ou seja, o bastante para se ter a esperança
do fim. Entrava, agora, na praia de Genipabu, uma extraordinária e beleza de
praia, margeada por dunas e coqueiros que os nossos olhos não acreditam e até
chegam a duvidar enfeitiçados de tanto encanto. A noite caía, mas ainda
não era hora de parar. A canoa continuou
a levitar na calmaria das águas noturnas. O mar abrandara. Sob o esplendor de
Lucina o espírito de o Menino de Maré se enchia de paz, da mais infinita paz
que nunca sentira antes; quão gratificante era tudo aquilo que deixou-se
envolver pela brisa e dormiu. Dormiu confiante como criança embalada numa rede
pelas mãos materna. Barco e berço, canoa e rede; homem e criança, homem e
homem. Não, não se podia discernir um do outro: se Ossiab homem, se ele
criança; o resultado é que ele dormira demais e acordara assustado. O sol forte
da manhã, já se encontrava alto, e encandeava os seus olhos. Acordou
desesperado, pois estava à deriva, se sentiu perdido no meio do mar? Aí, lembrou-se que tivera um belíssimo sonho,
alguém o guiava e a sua canoa rumava quase sozinha, porém ele não conseguia ver
o rosto do cicerone marítimo, por mais que tentasse identificar, aquele guia
misterioso, não o conseguia. E tudo se dava como se ele estivesse acordado, mas
mesmo assim terminou dormindo. Entre toda aquela confusão normal de quem acorda
assustado, percebeu que estava próximo da terra; aí, viu casas de pescadores,
um imenso coqueiral e alegrara-se até a alma, mas o prazer que teve se deu por
via contrária, ao invés de contemplar o lugar e descansar, foi-se embora e
continuou a singrar mar a dentro. E,
assim, canoou e canoou o máximo que
pôde. E navegou e canoou por muitos e muitos dias, até completar um mês de
viagem.
O mar parecia lhe
fortalecer mais e mais os ânimos, a vida; a cada vez que canoava mais queria
canoar pelo mar, não se cansava nunca se cansava. Parecia que aquele contato
direto com o mar fazia-lhe sentir-se seguro e rejuvenescido. Era uma energia
transcendental, que emanava da imensidão azul, e os mistérios ocultos das
noites eram todos desvendados, pela força do seu coração que só desejava chegar
ao destino. Dias e noites se passavam calmo e lento como a vida às vezes é, e
não é. Ossiab se envolvera profundamente mesmo, do fundo da sua alma com aquela
viagem, que sequer se lembrara de comer, não tocara na comida, porque não
sentira fome a nenhum momento e não era fastio não. Alimentava-se da esperança
de chegar, da contemplação, da admiração e por venerar as coisas belas da
natureza marítima. Tinha o firmamento inteiro a todo seu dispor a todo instante
e momento que quisesse ou não; a lua, as estrelas a todo instante a iluminar o seu
caminho, o seu destino. Estrelas no céu,
estrelas no mar. Luzes em tudo que era lugar.
Luzes realçadas até nas águas do mar. Tudo que emanava da terra, do céu,
do mar era como se fosse a essência de
seus alimentos. O espírito a transbordar de felicidade, a se arrebatar de amor,
a rejubilar-se mais e mais. Sem fastio, jejuava e meditava como um eremita na
solidão de seu barco. Sem saber e sabendo que, tudo isso, o fortalecia e lhe
deixava seguro e confiante para continuar, sem hesitação, a missão que ele
próprio escolhera?
cinco -A Mendiga da Praia
Numa calmaria de noite, a canoa virara num belo barco,
transcorria nas águas cristalinas e frias do Atlântico, sozinho. De súbito,
Ossiab sentiu estar sendo levado por uma força misteriosa. Algo que emanava do
mar. Uma brisa, um vento que o fazia poderoso e otimista do seu destino... Na
manhã seguinte, descobrira que viajara três meses. Não notara que o tempo
passara. Tudo se dera como num sonho.
Aí, veio a fome e resolveu parar no primeiro lugar que visse pela frente. Iria
comer. Agora era fome de verdade. A barriga acusava com todos os roncos.
Apareceu-lhe uma praia bem à sua frente, mas era miragem. Dessas que se sente
no deserto. Mas ele não tinha sede. Sentia era uma fome braba a corroer o
estômago. Fechou os olhos e deixou-se levar pela força misteriosa da noite
anterior e, quando abriu, estava onde sonhara. Era uma praia bonita, onde
desembocava um rio de águas límpidas. Viam-se belos cardumes: tainhas, carapebas, camurupins e peixes-reis.
Há noventa dias que não dera uma palavra com ninguém. Queria estar com algum
pescador daquele lugar, naquele litoral sem fim. Amarra a canoa numa estaca
de cerca que margeia o rio. Um lugar
calmo parecia reinar a paz das estórias de Trancoso que a sua mãe contava. Barra
do Rio era o seu nome. Descalço, chapéu de palha, bisaco, a tiracolo. Sente-se
outro ser ao pisar em terra firme. Uma certa leveza no corpo. Um caminhar de
passarinho é como se sente. Sozinho, sem uma viva alma naquela hora da manhã.
Minutos depois, avista uma pessoa. À medida que segue, descobre que é uma
mulher. Uma velha mendiga a puxar uma
cadela e a trazer um saco nas costas.
Velha e cadela bem ao seu nariz, sente-se profundamente infeliz. “Oh
Deus, mais uma miragem?!” Não! Não era miragem não. Eram cadela e velha em
deprimente desnutrição, em osso e alma.
Sentido dó pela pobre velhinha; Ossiab
entrega-lhe a cesta com os seus pertences, inclusive, a sua comida,
antes mesmos que a velha clamasse por o amor de Deus, sua esmola. Satisfeita,
comeu feito rainha com sua Princesa, a cadela, ambas, ali sentada na areia
fria, o que havia restado após três meses de viagem.
Não soltara uma palavra sequer, nem
mulher nem menino ambos ficaram como a cadela, que não fosse “pelo amor de
Deus” do silêncio no olhar pidão da pobre velha, na satisfação da doação de
Ossiab e no abanar de cauda da cachorra pelo alimento recebido. Fora só isso
que todos expressaram. A fome não deixara expressão em palavra, só de
sofrimento e de morte em espectro de mulher e animal. Ossiab assistia
estarrecido a tudo aquilo, mas ficara contente por matar a fome da pobre
mulher. Sentia-se envergonhado consigo mesmo, quando horas atrás morria de
fome. Matava a sua fome ao alimentar a vida de quem estava a morrer. A bem da
verdade, não mais sentia fome. Tinha um
enorme desejo de ficar ali, a conversar
com aquela senhora. Percebeu que a
velhice da mulher não era de velha, mas de fome. Muitíssima fome mesmo. Havia
uma certa jovialidade familiar na velhice daquela mulher de cara, de rosto, de
semblante em mutação constante identificado, paulatinamente, em cada olhar
perscrutador, dele, de que havia algo de especial naquela senhora. À tona fora
a sua investigação. Não conseguiu nada de necas. A comida transformara a mulher. De
desfigurada à encantadora no brilho de sua voz, quando Ossiab puxou uma
conversa, ainda assim, receoso. Sentados na areia, a conversar horas, e nada
aclarou a mente sua. Procurou afastar aquela ideia, ficou em silêncio, de olhos
fechados, matutando algo. Fora tirado do devaneio pela senhora.
- No que está a pensar o jovem rapaz?
Você mora por aqui?
- Não! Não! - Respondeu assustado - em
nada, em nada, minha senhora. Estava cochilando apenas. É que não tenho dormido
muito bem de alguns dias para cá.
- Parece-me que o jovem está de viagem!
Aquela canoa é sua?
- Sim! É minha senhora. Estou de viagem
sim?
- Para aonde vai, meu filho? Pelo que
vejo você está a viajar há muitos dias, e pela
bagagem que leva, ainda vai ter que muito canoar por essas águas
infindas desse mar caudaloso. Não é isso?!
- Justamente, eu
estou indo para a Camboa, à casa do Sábio...
- O mestre
Essiib? Interpelou a mulher.
- Sim, minha
senhora. É esse mesmo, o grande sábio da Camboa.
- Oh, meu filho,
foi Deus quem mandou você para aqui. Há meses que ando por estas terras, na
intenção de chegar nesse lugar, mas sei que não vou conseguir. Estou muito
cansada, as minhas pernas não mais aguentam e as minhas costas doem muito. Será
que você, poderia fazer um favor, para esta pobre mulher, em levar um recadinho,
digo, uma pergunta... uma perguntinha apenas, para o mestre Essiib. Pois, Deus
haveria de lhe pagar em dobro por esta segunda ajuda que você faria para mim?
- Sim, sem nenhum
problema, eu posso levar. Qual a pergunta que a senhora quer que eu faça?
E a pobre senhora
repleta de felicidade, encheu os olhos de lágrimas, pela tamanha gratidão
daquele jovem mancebo de coração aberto.
E Relata o motivo
de estar ali com aquela cachorrinha.
- Pois é meu
jovem, o motivo de eu estar a puxar esta cadelinha é que tenho uma filha, por
sinal muito bonita, saúde de ferro de
fazer inveja a
qualquer um, mas é surda e não
fala. Com isso, a pobrezinha tem vergonha, não sai de casa, não passeia. Você
já deve saber o motivo: moleques ficam a
mangar da coitada. Como sofre. Dá dó em vê tanta beleza, isolada dentro de casa
ou do quarto. Pergunte-me, a ele, o que fazer para a minha filha ouvir e falar,
e tornar sua felicidade completa?
Por fim, a visita
que Ossiab iria fazer àquele povoado, terminava ali mesmo. Ruma, então, ao que
estava predestinado a fazer. Agora, com uma missão a mais.
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