A minha amiga é aposentada e tem dois filhos. O marido seu é também aposentado e ganha quão razoavelmente bem quanto ela. Sentindo-se disposta e afeita às coisas filantrópicas, tem dedicado parte do seu tempo contribuindo, como voluntária, em ajudar pessoas carentes num hospital público do seu bairro. É enfermeira renomada, com muitos títulos, dentro e fora do país. Quanto aos pacientes, estes, adoram vê-la trabalhando naquele hospital. Se passa um dia sem aparecer, todos já começam a sentir a sua falta. A sua dedicação, o seu respeito e, acima de tudo, o seu carinho para com eles, é o que a faz uma pessoa distinta e querida por todos. Os seus colegas lhe têm uma admiração incomensurável, à sua dedicação, à sua experiência, ao seu amor...
Todavia, também ainda lhe sobra tempo para assumir compromissos extras e remunerados. Esta é a outra parte, com a qual preenche o seu tempo. Assim sendo, somando-lhe à sua aposentadoria, garante-lhe viver uma vida dignamente.
Com a sua vida bem estruturada pode desfrutar nos fins de semana do seu merecido lazer. Para isso, tem a sua casa de praia; dois carros na garagem, dois apartamentos; além da sua residência própria. Com tudo bem encaminhado, após trinta e cinco anos de merecidos trabalhos públicos, resta-lhe apenas, sem via de dúvida, investir na educação e no crescimento dos filhos. E nada mais natural e óbvio como o dever e a obrigação de todo pai, porém, que cada vez mais se escasseia dessa responsabilidade.
Trabalhou, cresceu. E por que não ajudá-los. Dar-lhes aquilo que não conseguiu ter. Fazer-lhes daquilo que não conseguiu ser. Afinal, eles eram os seus filhos. E, decididamente, os presenteou cada um, com um apartamento, registrados em seus nomes como garantia do futuro deles.
Quando seu filho fez dezoito anos o presente de aniversário foi um carro. Preocupada com a responsabilidade dele, decidiu por não registrar o carro no nome seu. Queria medir o teor de responsabilidade do filho. Apesar de universitário, segundo ano de Contabilidade; caseiro; de quando em vez, saía com os colegas de curso para o shopping; não bebe; não fuma; gosta de ir ao cinema, ao teatro de preferência com a mãe, que apesar de gostar, acha estranho. A maior parte do seu tempo se ocupa lendo; quando está em casa ou lê ou está no computador pesquisando para o curso.
Logo, logo, a minha amiga percebe que o seu filho merece o carro para o seu nome. Percebido e merecido. Tal qual ela percebeu, o seu filho lhe correspondeu com justeza. E uma vez responsável sempre dedicado aos estudos, às obrigações e, agora, ao carro.
A sua filha, ainda cedo, arranjou casamento que não durou mais que o tempo de lhe dá uma neta e voltar para dentro de casa. Não tinha ela como cuidar da filha, naquele apartamento, sozinha. Os avôs, nos dias de hoje, valem mais que a mais perfeita das babás do mundo. E pior, ainda teria que trabalhar. E com quem iria
deixar a menina? A solução mais salutar que vira era seus pais. E, assim sendo, ela, agora com a filha pródiga, de volta ao “lar doce lar”. Um aforismo ultrapassado, porém, de poder tradicional extraordinário para sanar as barreiras comuns do moderno dia a dia.
Há quatro anos que a minha amiga se deleita no dinâmico papel de mãe-avó-mãe. A neta pequerrucha faz o seu quarto aniversário e sua filha, recebe um carro de presente. A avó quer facilitar as coisas para filha. Quer atribuir-lhe responsabilidade de mãe, como ela foi. Agora, de posse do carro, pode passear com a pequerrucha nos finais de semana. Pode levá-la ao teatro, ao cinema, à praia sem incomodar nem a ela nem ao marido. Afinal, eles são apenas avós e não pais. Não era o “toma que o filho é teu” não. Não era absolutamente isso. Mas um convite à filha, como responsabilidade de mãe, que ela estava a delegar um poder que é inato.
Contudo, a filha era o paradoxo do irmão. Mas a minha amiga mesmo assim arrisca. Faz o mesmo, ou seja, dá o carro sem passar para o nome da filha. E desta vez parece agir mais certo ainda. Três meses de uso, o carro aparece batido. Detalhe, a filha, sem dinheiro para o combustível, alugava-o para mantê-lo e sanar algumas dívidas que adquirira.
A minha amiga, então, percebe que não estava lidando com um mesmo gênero de filho, descobre que cometera um grande erro. Decide tomar o carro da filha para colocá-lo à venda. O seu marido, condoído com a sua atitude, o seu radicalismo. Diz:
- Não faça isso, mulher! Vais mesmo vender o carro da nossa filha?
- Vou sim! Eu não aguento mais ver essa nossa filha com tanta irresponsabilidade...
A minha amiga pensativa... Sensibilizou-se com o marido. Resolve esconder o carro na casa de praia.
A netinha, sentindo a falta dos passeios de domingo à tarde, com a sua mãe, diz:
- Vovó, você vendeu o carro da minha mãe?!
Tomada por um profundo silêncio, entre ressentimento e dor, a minha amiga deixa uma lágrima brotar de seu rosto.
Enquanto, a sua filha, apenas permanece a olhar para as duas num silêncio de mãe e filha, de jovem e adulta, de dúvida e certeza.
M. C. Garcia
Crônica inédita do livro CRÔNICAS DE UMA CRÔNICA VIDA, que será lançado em breve, na XXI Bienal Internacional do Livro de São Paulo, entre 12 e 21 de agosto de 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário