ESTATÍSTICA DIÁRIA

ADMIRADORES DAS IDEIAS

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

ENSAIO FILOSÓFICO

COMEÇO E FIM DE SÉCULO E DE MILÊNIO


 * M. C. Garcia

Antes de começar a redigir essa idéia, custou-me a perda de alguns preciosíssimos neurônios – eis o que acontece com quem busca exercitar o pensamento, com ou por qualquer coisa que lhe perturbe a cachola, por mais simples que seja. O motivo era arrumar um título. Decidi por este que verem acima. Pensava, agora, no estilo. Se escreveria em forma de crônica, prosa, ou de um grande poema de fim de século como assim o escreveram e fizeram os modernistas de outrora, ainda no despertar dos -ismos e da Belle Epoque.  Mas, quem sou eu para realizar tal façanha? Um pobre coitado, que no universo da escrita, das letras, estarei e viverei sempre a engatinhar, porque sinto que jamais irei sair da primeira parte do desvendamento do enigma da esfinge. Serei eu, isso sim, apenas ousado em buscar expressar o mínimo de sentimento que me resta de quando em quando nesse meu peito senil e nessa mente ansiosa por tudo. Por que em tudo que sinto, procuro fazer apenas uma reflexão? Isto é, das grandes coisas ou dos temas que estão em voga, sobre os quais, só intelectuais  renomados - só eles - assim conseguem ousar e fazer sucesso. Isto, dado pelo honrado prestígio de ter sido laureado com o prêmio Nobel, ou, por ter milhões de livros publicados  em vários idiomas pelo mundo inteiro. Mormente, num momento privilegiadíssimo como este, no qual, estamos vivendo intensamente que é o começo de um novo ano. Há algo mais relevante, mais transcendental - diria até, mais exuberante –, que a transposição de um novo século e, coincidentemente, de um novo milênio? Sinceramente, não há.

Pois bem, como verem, acredito que a minha opção vai enveredar mesmo pela linha do ensaio, visto que, este me parece ser mais conveniente, o qual me permite não adentrar quão profundamente nas coisas, ou seja, ficando apenas na superficialidade. Eis que esta forma, no meu ver, é a mais prática de se poder expressar uma idéia. Isto é, para não ter o comprometimento de querer fazer uma coisa acabada, como um fim abruptamente definido. Ou de algo que se sirva de parâmetro ou referencial de alguma verdade. Não. Não é nada disso. A intenção é de que algo sempre vai estar em movimento constante e aberto para completude daquilo que hoje ainda não consigo visualizar com tanta nitidez. Deixarei tudo isso, talvez, assim como se procede com a literatura, com o cinema, com a pintura, a arte em geral, isto é, desde que tenha o real sentido de abertura para o pensar ou o criar, assim não sendo, não se caracteriza o sentido da minha intenção aqui. Portanto, quer queira quer não, o intuito desse ensaio é tentar enveredar, com sutileza, no universo do pensar filosófico.

O interessante seria discorrer da ilusão sobre a qual todo mortal vive indubitavelmente revestido consciente e inconscientemente desde muito e muitos séculos.  Ou, melhor dizendo, desde vinte séculos atrás. E desde que fora convencionado por calendário (gregoriano, grego, israelita) os dias, meses e ano.  Quão fantástico é o poder que a ilusão tem sobre as pessoas, pois estas são envolvidas independentemente do grau intelectual ou cultural. O ser inteligente cria a sua ilusão. E, vive e sobrevive dela como se ele próprio fosse parte ou todo dessa ilusão. Mera ilusão! Ninguém pode se iludir de si próprio, nem a si, porque iludir-se de si ou a si, é fazer com que o objeto (utópico) criado, supere o sujeito que é o criador. Jamais se pode perder o domínio da sua criação que é o próprio objeto (noutras circunstâncias chamaríamos de criatura e num vindouro breve chamaremos de clone).  Vivemos inconscientemente envolvidos até a alma por objetos mil. Alguns, criados pela nossa imaginação – por nós mesmos – outros, criados por outrem. Porém, estes são onde mora o verdadeiro perigo. Porque não os conhecemos com propriedade, nem tampouco, a sua essência.  Nos objetos dos outros está sempre inserido o dedo de seu criador, a sua opinião, a sua experiência, a sua fatal intenção. E o pior, a personalidade de indivíduo – o criador do objeto. Tudo isso, é parte também da técnica, do estilo. Sabe-se que não é fácil de conhecer-se personalidade de ninguém. Porém, há de se apreender a técnica e o estilo de quem quer que seja o indivíduo ou qualquer que seja o objeto deste ou de outrem. Tudo isso, para que não sejamos dominados ou transformados, também, em objeto de uso dos outros. E, inexoravelmente também, da ilusão nossa ou deles. Não somos máquinas, robôs e muito menos títeres que têm seus cérebros nos outros.

Entenda-se ilusão, aqui, como sendo toda e qualquer forma de idéia criada ou utopilizada pela mente humana até hoje, como forma de alienação, mormente, àquela a quem tem vivido intensamente sem um átimo de questionamento, sem a mínima reflexão sobre tudo que já aconteceu desde os primórdios da humanidade ou, como vem, principalmente, acontecendo até nos dias atuais. Assim como, sempre foi desde o primeiro pensante a idealizar algo e a criar assim a sua teoria, hipótese, tese,  dissertação, monografia; e  a colocou como padrão universal para transgredir o que havia – ou será que ainda há mesmo, nesse mundo da globalização? – de mais sagrado, puro e essencial num povo ou nação: a sua Cultura. E por fim, deu-se, erroneamente, numa concretude sutilmente abstrata do mundo utópico, ilusório, fictício e virtual do qual somos todos vítimas incondicionais. Mas que antes era de total domínio do indivíduo.

     A ciência teorizou as idéias e as pragmatizou aos extremos; já a religião as dogmatizou alienantemente. Mas, a poesia e a filosofia deram o sentido real da idealização propriamente dita da idéia. A política, porém, foi quem pegou tudo e as deturpou e colocou dentro de um mesmo saco e teorizou, dogmatizou, idealizou. E mundos que antes eram distintos, passaram a ser colocados a prova de ferro e fogo, abstratamente. E, assim, uma verdadeira miscelânea de coisas nos foi posta e imposta, graças à ciência, à religião e à política. A poesia, esta que, contudo, antecede à filosofia, seja talvez a única forma de se ter domínio sobre a ilusão da qual discorro nessas linhas.  É a poesia o instrumento que serve para manipular a ilusão de si e dos outros. É um veículo pelo qual nos faz viajar no universo infindo da ilusão sem nos deixar iludido ou fazer-nos objeto dela. A poesia nos faz mergulhar nesse mundo e ao mesmo tempo nos faz voltar ileso desse mesmo mundo. Voltamos com sã consciência para questionar e refutar sobre as coisas que a própria ilusão proporciona. É aqui, então, que se entra com o exercício do pensar, propriamente, como o faz o poeta. É talvez e, certamente, o princípio do poema da ilusão no qual iremos encontrar o verdadeiro sentido do filosofar.

Refutemos, pois, quanto ao tão alardeado, ao tão exaltado e, por que não dizer, ao tão esperado momento festejado nos quatro cantos do mundo. Mundo este, que se diga verdadeiramente, ocidental apenas.

Eis, então, que é chegado o dia 31 de Dezembro de 1999. A fantástica e contagiante festa de passagem do milênio. Bem como, também, a virada de um novo século. E, por que não insisti em dizer, uma passagem de ano comum como todas as outras desde há vinte séculos. Porém, não podemos negar jamais, o que há de extraordinário, de belo e de fantástico nessa passagem. É, inegavelmente, a tríade de festividade que se vive nesse momento ao mesmo tempo. Não bastasse a festa que se comemora a cada completar de 365 dias. Comemora-se o apogético  festival do milênio e do século. Uma festividade que irá marcar profundamente a vida de muita gente. Isto é, pelo menos, para alguns ocidentais. Sabe-se, porém, que muitos judeus, muitos orientais vivem o além do além dos nossos minguados dois mil anos e nem sequer dão conta dessa realidade, pois que, é puramente ocidental. A prova disto é que, aqui mesmo no próprio ocidente, como uma grande ironia, muitos judeus aguardam fervorosamente a vinda de Cristo. Os orientais vivem através da sua própria tradição a milenaridade de que o nosso ocidente carece. E que, nós ocidentais, muitas vezes, temos que beber nessa fonte para compreender o verdadeiro sentido de cultura, acima de tudo, milenar. Bem como do próprio conceito de ciência que nos legou Marcos Polo com as suas viagens pelo continente asiático.
Outrossim, nós mortais do ocidente, nos perturbamos à toa, quando nos enchemos de expectativas, de ansiedades aperreantes por um momento, puramente fictício, igualmente a qualquer um outro. Sem mais nem menos festividades. Ou, com mais ou pouquíssimas festividades triviais realizadas nos quatro cantos do mundo ocidental. Que, se trocássemos, o “o” por “a” do logos ocidente, justificaria literalmente toda a ilusão e o lapso que muitos estudiosos "acidentalmente" insistem em priorizar apenas uma face da moeda, como se o fato histórico se tratasse apenas de uma criação fictícia como uma eterna epopéia, quando na verdade, Homero, nunca se passou por historiador como assim muitos o querem que ele seja com a sua Ilíada ou Odisséia, mormente como são os modernos tecnicistas ocidentais. E a palavra literalmente modificada – de ocidente para acidente – nos daria o sentido absoluto de todo esse comportamento medíocre e não mais viveríamos tomados dessa ilusão.  Desse grande erro histórico? Ou imposição histórica?

    Todavia, há uma necessidade extrema de se viver sempre da abstração. Porém, com certeza, só os poetas e os filósofos conseguem apreender e conviver harmoniosamente com essa abstração. Isto é, sem serem tomados como mero uso da abstração ou da ilusão. O que não se pode, nem se deve é viver eternamente iludido de que a passagem dessa tríade festiva venha a dá alento real ou mesmo que seja fictícia a toda uma humanidade sofrida; tomada pela fome, pela guerra, pela miséria. Acredita-se numa mudança – estes são os otimistas – diga-se de passagem, uma minoria que já anda se fartando de tanto otimismo. Porque sempre se fizeram otimistas acreditando nos outros. E, em si, dando-lhes o voto de confiança. Mas a humanidade foi traída e injetou em seu otimismo uma boa pitada de pessimismo. O mundo se cansou do otimismo de acreditar nos outros e passou a ser mais "otimista em si mesmo". No ato da sua ação.  Lutando com perseverança a favor ou contra aquilo que só o seu trabalho pode lhe proporcionar o verdadeiro sentido. Ou seja, passou a valorizar o que foi produzido ou criado pelas suas próprias mãos. Tirado do seu próprio suor – o seu sustento. Sem mais atribuir à interferência de um “atravessador bonzinho”, sempre a querer indicar qual o melhor caminho em sua vida particular ou para os seus negócios principalmente. Agindo assim, passou a resgatar o seu valor como criador e detentor da sua obra, do seu ofício mais real. Justamente como fazem os poetas e os filósofos. O escritor, José Saramago, português, laureado com o Nobel em literatura, se afirma em ser o único dos últimos pessimistas nos dias atuais, certamente ele esteja com razão. Pois que, sendo um "otimista em si mesmo" inexoravelmente, se torna um pessimista com relação à coletividade. É o que nós precisamos ser: pessimistas coletivos.

Mas o mundo, infelizmente, não é feito só de poeta e de filósofo. Mas de povo sofrido. Aí, sim. Esta é maioria da humanidade. É esta maioria que acredita em mudança realmente. Isto é, até enquanto, no auge da festividade são acionadas todas as sirenes de fábricas. Buzinas e mais buzinas de carros, trens e navios a soarem em ruas, avenidas, portos das grandes e pequenas cidades. Até enquanto estão sendo explodidas as toneladas e mais toneladas de fogos de artifícios. Numa grande festividade semi-mundial que vai do Rio de Janeiro a Paris e desta a Nova Iorque. E, exatamente, quando na contagem regressiva, dos segundos: 11h59s01,02,03..... 59; 00h00m00s. Aí, dar-se a grande explosão!!! E em cheio atingem os corações das pessoas. Todas, a saltitarem de felicidade. Um sorriso e muitos abraços. Muitos e muitos, "Feliz ano novo!" "Feliz novo milênio!" "Feliz novo século". Uma grande festa para os mais afortunados, diga-se de passagem, uma insignificante minoria, que partilha em menos de um terço deste grande planeta. Mas, tudo isso, só vem a caracterizar mesmo o grande sinal de eterno paradoxo. Alguns miseráveis deste outro lado do planeta - que é o ocidente - não compreendem bem o sentido dessa barulheira infernal. São mendigos nas ruas, enfermos nas camas de hospitais, senis em abrigos; dementes em manicômios.

Um mentecapto, num momento de reflexão, recobra a sua consciência e vai à sua reminiscência e, em sua memória perdida, lembra-se com nitidez - essa lembrança é muito comum nos loucos - de que a festividade lá fora se refere à passagem de ano; é ano novo; é a passagem do ano 1999 para 2000. Todavia, sendo ele, louco varrido, como assim o diz, faz a seguinte reflexão: "Sei que a minha loucura justifica o minguado espaço, no qual me encontro; porém, ser louco é um rótulo imposto pelo poder da maioria dominante que mais contribui para que se seja alienado no grupo, que é o mesmo que a loucura grupal; em que se pode ser louco como coletividade alienada e não louco pela individualidade, este louco é uma ameaça à loucura coletiva que ruma às mais absurdas das ilusões impostas pelo capital, pela mídia, pela sociedade de consumo e por, acima de tudo, esta ilusão, esta descabida mentira colocada pelo mundo ocidental de que a passagem de ano que estamos vivendo seja a passagem de um novo milênio ou de um novo século. Balela! pura bazófia! Visto que, tudo isso, só se justifica mesmo, com os loucos da sociedade de consumo, em nome de outro louco com um poder centralizador denominado de capitalismo, que só ele tem poder de antecipar a passagem de milênio e de século em um ano antes, ou melhor, dizendo, só para comemorar e bebemorar, literalmente, por duas vezes. E viva os loucos de lá!! E vivam os loucos daqui!! É passagem de ano novo, comum como todos os outros anos de outrora. Viva o ano 2000, e feliz ano novo!

Só um. Um único louco aguarda ainda a passagem do milênio, do século em 2001. Sou eu. Só por que não vivo a ilusão alienante do capitalismo, mas por viver a loucura da minha utopia, assim como, o filósofo vive da sua filosofia e o poeta, da sua poesia.

Dez de 2000.

* M. C. Garcia é poeta e filósofo

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