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Comentário I
Começo
o meu comentário sobre esta obra literária dizendo o seguinte: O que seria do
mundo sem os sonhadores, sem os visionários. A obra retrata simplesmente como o
nome assim o diz Vida Mulher, vem presenteada para nós leitores (as) com dois
contos e um poema. Nos contos encontro-me inserida em diversas passagens do
primeiro conto; O Veraluz é que ele traduz, mostra uma realidade nua e crua num
misto Cristã com os desafios materiais que a vida nos impõe. O poema é romântico,
lindo! Emocionante, o mesmo mexeu com minha alma feminina levando-me ao êxtase.
Ah! Como eu gostaria de ter um José igual ao do poema, ainda não o encontrei;
ou será que já? E o vento levou... O autor Emecê Garcia é feliz ao escrever uma
obra que traduz a beleza singular do ser mulher, mesmo que seja um paradoxo. É
meu caro amigo eu estou bem aqui no seu poema quando escreves assim: “ Porém
existe na vida, mulher que vive entre Eva e Maria”. Enfim amei a obra literária
e desejo que outras (os) possam lê-la e ter uma visão melhor que a minha, nesta
também vi que você perpassa outras obras suas da literatura em cordel como: UM
CACHO DE FLOR DA VIDA. Termino meu breve comentário deixando para ti algo de
Fernando Pessoa tão bem citado por você
em nossas rodas de conversas literárias e de amizade. “Tenho todos os sonhos do mundo”. Parabéns para nós pela
magnífica obra literária.
Maria da Apresentação, ou simplesmente Patão.
(Professora)
Comentário II
Essa é uma estória criativa que apesar de tudo não
deixa de ser uma história vivenciada por algumas mulheres. As mulheres de ontem
e as mulheres de hoje; as Marias que muitas vezes são obrigadas a fazer tudo
que um homem quer: passar, lavar, cuidar da casa, dos filhos e dele (o homem);
e quando acorda para a vida já perdeu um terço da sua liberdade. Essas são as
escravas da vida, que mesmo sem saber, elas são escravas sim, e ainda tem aquelas
mulheres que trabalham só para manter o marido; tem também aquelas que são
vaidosas que é como a Maria Carioca que trabalha para luxar, estudar e se
formar para não depender de homem nenhum; casa-se, tem filhos, paga para alguém
cuidar deles, mas não deixa de educá-los para que eles se formem. Já a Maria
pernambucana, mesmo não sendo muito esperta, soube determinar a sua vida do seu
jeito, trabalhando, cuidando de três filhos sem nunca lhes deixar faltar nada,
principalmente à educação deles, e mesmo sem gostar muito de estudar não quis o
mesmo destino para os filhos. Estas são as mulheres que vivenciam o passado, o
futuro e o presente a cada dia, a cada momento na vida de cada uma das Marias. As
oportunidades de ser livre nunca deixaram de existir, apesar do pequeno espaço,
nós mulheres é que muitas vezes, não soubemos aproveitá-las. O livro Vida Mulher de Emecê Garcia depois de
ler mostra-nos uma realidade em cada verso da sua poesia ou na filosofia criada
pelo poeta.
Marina Garcia – Professora.
orelha
Para
falar de uma obra literária se faz necessária as ferramentas da crítica ou de
muitos críticos professores de literatura, que a possuem para explorar com
distinção. Eu certamente sem essas ferramentas atrevo-me para não ficar
indiferente, diante da produção literária do potiguar, filósofo, poeta
cordelista, escritor, Maurício Garcia.
Maurício Garcia, como poeta estreou
muito jovem ainda, contradizendo uma postura de militar no pós-ditadura, com
seu livro de poemas Dendroclasta.
Como escritor, de prosa fluente e segura
e aguda percepção do observador, vem enriquecendo com suas produções,
informando o desenvolvimento de sua mentalidade literária e sócio-cultural.
Em Vida Mulher – Dois Contos e um Poema,
ele demonstra como é o compromisso fundamental da literatura, documentando os
apelos do drama social no qual ele o faz com destreza e ainda caracteriza na
sua obra a realidade, pois, no seu discurso oferece, a tragédia social como se
apresenta catalisando sempre que possível a realidade ambiente. Com isso a saga
literária de Emecê Garcia traz a capacidade de reciclar as incertezas do
cotidiano e de atualizar a sua própria modernização com a postura de escritor
assumida na feitura de Vida Mulher – Dois Contos e um Poema, Emecê Garcia
efetivamente testemunha sua argúcia e seu tirocínio. Um contista que tem
consciência de seu exercício e sabe até aonde é possível conduzir os
arrebatamentos da sua imaginação e o seu amor pela arte da escrita.
A grandeza de um ser humano reside em sua
capacidade de amar, Maurício Garcia com esse atributo em abundância, doação
divina, revela o quanto é possível desafiar com esse fantástico instrumento e
mecanismo das letras, e torná-la mais palpável e mais acessível a todas às
camadas sociais.
Natal, 26/07/2007
Rosa Firmo é
professora, poetisa e escritora cearense.
apresentação
Quando me honrou com o pedido de uma breve
apresentação para essa obra, senti-me naturalmente privilegiada. Como resumir
essa obra de Emecê Garcia que fala sobre as mulheres de sua aldeia banhada
pelas gamboas do Potengi, ora em prosas, ora em versos? Esse é mais um filho
saído das entranhas de sua mente com fortes pinceladas filosóficas e o sabor da
cumplicidade no caminho das letras.
Em “Veraluz”, pescadores e o mangue, um tão
presente na vida do outro. Suas mulheres que esperam a volta dos parceiros com
seus pescados do mar e que tomam conta da prole tão extensa! O autor brinca com
nomes e palavras para descrever famílias que nos parecem conhecidas, como os
vizinhos que habitam a nossa aldeia natal.
Seus escritos têm a sonoridade dos ventos que
sopram do norte para a aldeia, trazendo no leve roçar da brisa a sensibilidade
à flor da pele. Ao lermos esse livro, somos tomados por um turbilhão de
emoções, que é a prova concreta de que o autor estabelece um intercâmbio
afetivo com seu público.
Numa viagem transcendental onde a mulher se
transforma em anjo, o leitor percebe que existem fatos que são colocados em
nossa vida para nos conduzir ao verdadeiro caminho. Há um furor cortante da
sensualidade, mas imbuído do esplendor simples da realidade humana.
Com competência e habilidade vai compondo sua rede
de poesias, utilizando como matéria-prima as morenas que povoaram sua
pré-adolescência. No cordel feminino das “Três Marias”, há a presença do amor
paixão, amor inspiração, onde recordar é agradecer, não somente viver.
Em “Lucina”, a prosa volta para flertar com a
Filosofia que tenta explicar a mulher forte, dona de seu destino.
Por isso, “Vida Mulher” leva-nos a pensar como
Pablo Neruda: “Acredito na personalidade através de qualquer linguagem, de
qualquer forma, de qualquer sentido da criação artística”.
Kátia S.
Azevêdo
Letras e
Jornalismo - UFRN
veraluz
Na madrugada do vigésimo segundo dia do segundo mês
do ano quarto da década de noventa do século XX - há seis anos para o fim do
mundo -, um homem de 45 anos revive em “alto estilo”, o apavorante tormento da
sua infância e começo da sua doce révora. Pois, acordara literalmente, molhado,
suado por sonhar que estava morrendo afogado em águas revoltas de sua
infância.
Antes, que tudo isso fosse absoluta veracidade,
assim não teria que sofrer o desprazer ou a vergonhosa humilhação, na qual,
teria que passar por enxugar o chão da sala quase sempre, ou, a sair pela rua,
com a rede na cabeça a pedir dinheiro na vizinhança para comprar sabão e depois
ter que lavá-la.
Não
existe coisa mais degradante para um cachopo que já aflora para sua
adolescência, mormente, quando começa a despertar os primeiros sentimentos do
flerte pela cachopa de olhos claros, cor branca, cabelos negros e longos, a
qual chegara a poucos dias no bairro: a bela e encantadora Vertu.
Quão
humilhante era ter que ir à casa da tia e esta, à noite, colocava uma enorme
bacia debaixo da sua rede para não ver o seu piso de taco sintético manchado.
Quão doloroso era suportar a moça, amiga de sua mãe, passar por ele e perguntar
sempre:
“O
meu namorado ainda anda molhando os lençóis?... Assim eu não vou poder me casar
com você.”
Até que lhe vinha à ideia, a mesma e maldita
vontade de fazer aquilo que um amigo seu fez, certo dia, na sua atordoada
humilhação querendo cortar o seu mal pela raiz: amarrou a ponta do seu “toyou”
com um cordão e, nunca mais... cortou mesmo.
Zemil,
portanto, tinha medo só em pensar de ter que fazer o mesmo, por isso, não
arriscava. Tinha horror só em pensar vê o seu “toyou” amarrado na ponta,
pressionado por um cordão, a sentir aquela dor insuportável no pé da barriga.
Não.
Isso não, jamais ele faria. Preferiria então passar por toda essa humilhação.
Tal qual a que, agora, aos quarenta e poucos anos estava a passar, por ter
sonhado magnificamente com a belíssima e mirífica Vevê: a Virgem Sã. Apesar de
seu sentimento voltar-se mesmo, era para Vertu.
Seria
um caso patológico? Não, não seria mesmo! Na Faculdade de Odontologia havia
lido algo a respeito, que o deixara tranquilizado. Ou, seria o mesmo desejo
frustrado de adolescente que nunca pôde realizá-lo? Talvez, não o desejo
frustrado de adolescente, mas o próprio afã de homem afogado em pecado. Se não
era nada patológico nem frustrante, então, como que agora aos quarenta e cinco,
quando tudo já se parecia resolvido, realizado e acabado, voltava tudo assim
tão debilmente? Seria, então, castigo?
Vevê
era uma distinta menina de uma família de seis mulheres - uma intrusa - e dois
homens, que morava num bairro pobre da periferia de Natal. A sua casa, apesar
de ser de taipa, tinha um asseio que excluía aquela visão injusta que se
costuma, geralmente, fazer sobre a pobreza; tinha um brilho peculiar, distinto,
tanto externo quanto em seu interior. Porém, a sua família não fugia a regra
das distorções que existem na maioria dos lares do planeta. Era pobre, muito
pobre mesmo.
Pois
é, e além de pobre, o seu pai era alcoólatra. Este trabalhava de pescador.
Tinha as suas farturas na alta estação, mas no inverno mal se tinha o que comer
e a única saída que via era mulher, menino e filhas caírem no batente para
ajudarem nas despesas da casa.
Vevê
era a mais nova, por isso tinha que ficar em casa aos cuidados da avó que
morava vizinha. A menina era um graveto de gente, mal se sustentava de pé. Era
franzina em demasia e sempre estava desidratada e de quando em sempre estava
tendo passamentos, calafrios e desmaios constantes, arrebatada pela fome.
Pobre
e rica Vevê, pálida, desnutrida, mas de uma beleza de se fazer inveja a
qualquer moça da cidade, e de deixar arregalados os olhos de muitos
pés-de-chinelo por aí. Era o diáfano milagre da idade que a transformara em
mulher. Acabara de ingressar na adolescência.
Certa
vez, Vevê ganhara um belo vestido lácteo-nuvem, presente da sua madrinha. E,
então, uma beleza ímpar se realçava quando ela, aos domingos, pela manhã, ia
para Igreja Assembleia de Deus (a mesma que a sua madrinha freqüentava há
anos); vestida do seu lindo vestido branco-virgem, o qual se estendia até
abaixo dos joelhos, em seu corpo franzino de criança-mulher. Dentro daquele seu
vestido quase longo, Vevê escondia as canelas finas de maçarico e o seu rosto
ficava mais corado com um suavíssimo toque de ruge, que ela usava, escondido da
irmã mais velha só para disfarçar um pouco o amarelo do rosto, e assim, ela se
transformava numa personagem de favela digna de uma parábola moderna.
O pai
de Vevê, Pindaíba Pindaí, quando não estava no mar, estava no bar, no boteco de
Jericocó com os amigos de copo, a tomar todas e mais algumas, ou senão, jogando
sinuca, baralho. Pindaíba era daqueles homens com “H” bem grandão. Ostentava o
porte de machão e se gabava todo assanhado em dizer que possuía duas mulheres.
Isto é, a morarem, ambas, dentro da mesma taipa sem problema algum. Eram
Idiotina, a legítima; e Inferta, a outra. Estes são os seus benditos e sagrados
nomes que seus pais deram, ou seja, um tipo de tradição acima de tudo no
nordeste que se segue numa mania de juntar o nome do pai com o nome da mãe.
Idiotina
(Idio, do seu pai, Idioclécio e Tina, da sua mãe, Cristina) sua mulher, apesar
dos quinze filhos que tivera, o tempo não lhe parecia ter sido tão cruel. Assim
como a sua filha, Vevê, ela também era magra e tinha a pele que não
caracterizava os cinqüenta e tantos anos nas costas. Dos quinze bugrelos que
botou no mundo, apenas cinco sobreviveram para contar e viver a história de
miséria sem fim. Mulher exemplar, submissa até se dizer chega, mas via no
marido um tipo de estupidez aceitável, pois, apesar de rude e grosseiro era um
homem trabalhador, um pescador de gabarito e de respeito.
A
desgraça só se dava quando chegava o inverno e a maré não estava para peixe
literalmente. Ele perdia as rédeas do senso e metia o pau a beber e, ao pé da
letra, o cacete em Idiotina e Inferta, em ambos os sentidos.
Mesmo
assim Pindaíba, para Idiotina, era como se fosse Deus no céu e ele na terra,
que nem no dia em que achou de levar para dentro de casa Inferta (a outra),
Idiotina não hesitou na credibilidade dele, pelo contrário, viu em seu macho o
poder de agora em diante satisfazer sexualmente, na mesma cama, duas mulheres.
Ela e Inferta, a “coitadinha”.
“Aí, é que é homem com ‘H’ bem grandão”.
Dizia
Idiotina satisfeita e orgulhosa.
Marido
e mulher tinham a mesma justeza de conceito. Idiotina em casa e Pindaíba a se
amostrar no boteco de Jericocó.
Em
quinze anos de convívio tiveram quinze filhos, todavia, dez deles haviam
morridos, e a morte para eles se tornara uma mania, uma coisa comum. Tanto para
eles, quanto para as meninas e o menino inocentes.
Pindaíba
não se preocupava com a morte nem com a vida de ninguém, mas apenas com a
quantidade de filhos que era capaz de produzir. O endeusamento de cabra-macho
também era caracterizado, com muito orgulho, com o velho adágio que ele próprio
adaptara, e que não se cansava de dizer, na porta do boteco:
“É,
meus amigos, o cabra pra mim provar que é macho mesmo, tem que ser um fora, um
dentro, outro no pensamento; e se desse, seria um a todo momento”.
E a rapazeada, do boteco de Jericocó, achava aquilo
bonito e muito engraçado. Os dizeres de Pindaíba eram sabedoria de boteco.
Filosofia de mundano. Por isso, muitos o seguiam, ao pé da letra, o seu
exemplo.
A
filha mais velha se chama Boslla, tem vinte anos, se perdera no primeiro “boi”
que teve; aos dez anos, já era mãe solteira, e até hoje nem Pindaíba nem
Idiotina sabem quem foi o pai do bugruelo - quem fez o bucho nela? - só ela e
Deus sabiam e ninguém mais. Nunca falou para seu ninguém, nem mesmo para o
cabra safado, que ao invés de assumir, sumiu no meio do mundo...
Fezzel,
o primogênito, macho que nem o pai, aos dezesseis se amancebou com uma coroa,
quinze anos mais velha do que ele. Zeferina era o nome dela a qual levou a
sério o velho ditado: “filho de peixe, peixinho é”. Eles não eram peixes, mas
desse mar, tinham domínio.
Fezzel, como já se podia desconfiar, não era flor
que se cheirasse, estava a tomar o mesmo rumo do pai. Zeferina, já de orelha em
pé, meteu o pau, ou seja, a mexer os pauzinhos, a fazer de tudo só para prender
Fezzel a seu próprio rabo-de-saia, para ele ser só seu e de mais ninguém; e de
tudo que ouvia falar sobre simpatia, de feitiço para prender homem, se metia a
fazer.
Fezzel
saía para trabalhar, ela corria para o quarto, pegava a cueca dele, dizia com
fé umas boas lorotas, fazia umas orações fortes e depois, a enchia de
alfinetes, caso o marido saísse com outra mulher, certamente, iria brochar. Ou
seja, não seria macho para mulher alguma, para nada nem ninguém.
Certo
dia, Fezzel chegou do batente, Zeferina toda arrumada cheirando a loção e
brilhantina nos cabelos, partiu para atacar o “garanhão” sedento e sebento de
suor até a alma.
Havia
decorridos alguns minutos, mas Zeferina não virá nenhuma reação do seu
“garanhão”, e, num átimo do juízo ela se lembrou e percebeu que a coisa
funcionava mesmo.
Disfarçadamente, inventou de ir à cozinha e foi
desfazer o feitiço. Ao retornar, Fezzel estava a subir nas paredes, feito bicho
no cio, feliz por se sentir macho outra vez e ter superado o pesadelo
desgraçado. Sem desconfiar um tiquinho sequer da mulher. E a “potranca”, por
sua vez garantia a seu “garanhão”, por aqueles bons momentos de prazer e de
felicidade, o poder da procriação e de estender a sua espécie por geração a
geração.
Coccoly
era a filha de número dois na escala decrescente das meninas. Esta parecia ter
arranjado o caminho certo. Terminou o 1o Grau. Poucos eram os que conseguiam
essa façanha, naquele bairro pobre. Agora, Coccoly tinha que estudar no centro
da cidade, porque ali não tinha 2o Grau.
Nos
primeiros meses, ela já estava de namorico com um colega de sala; e, nove meses
depois, bem aplicadíssima ao ato de “isto dar”, como só ela mesma, tem nos
braços o merecido diploma de uma única matéria: “prática sexual”.
E ali, no espaço da minguada casa, da minguada vida
divide-se o coração de Idiotina, para dar lugar a mais alguém: a filha, o genro
e o neto.
A penúltima
das irmãs é Merlla, esta se engraçara por Paller, sobrinho de um veranista. E
foi paixão, à primeira vista. Saiu de casa e foi morar na casa da mãe do
marido, sua sogra.
Paller é sobrinho de veranista que é bem empregado,
mas ele não, não dá um prego numa barra de sabão. Não gosta de trabalhar, vive
de pouco ou quase nenhum biscate. Vive de rolo, a trocar e vender o que pega:
relógio, bicicleta, rádio, tênis, corrente, etc. às vezes e sempre de origem
duvidosa. Não é muambeiro. Nem isso consegue ser. Isso também é trabalho árduo
para ele.
Merlla,
sua mulher, gosta de trabalhar; vive dos afazeres de doméstica na casa de um,
na mansão de outro, e ganha o seu mísero dinheirinho. Agora, ela vive bem e
mora bem, porque na casa da sogra tem muito espaço. E com a ajuda de um, com a
ajuda de outro, e do seu próprio esforço, ela conseguiu erguer quatro paredes
de um barraco no fundo do quintal e mora numa casa de tijolos com reboco. Coisa
que o seu pai nunca conseguiu, pois, até hoje, vive a morar em casa de taipa.
Mas
tudo tem o seu preço, Merlla tinha o seu cantinho, e um Paller muito violento
que bebia demais, quando chegava em casa, quebrava até o que não tinha. O
engraçado é que ele não tinha dinheiro para dentro de casa, mas tinha para fora
e encher a cara todos os dias de drogas lícitas.
De
quando em sempre, Merlla aparecia na casa da mãe com marcas no corpo, um
roxeado aqui, um vermelhão ali. Era esbofeteada na calada da madrugada, pelo
cambalacheiro do marido. De vez em sempre, ouviam-se uns gritos perdidos no sem
fim do silêncio da madrugada, de mulher masoquista e de homem sádico.
Endossando cada dia a máxima sadomasoquista.
De
tudo o que já ocorrera à família Pindaí, ainda era muito pouco diante da
desfeita, da humilhação na qual estavam a passar, principalmente, as filhas e o
filho seus. Era, justamente, com relação a seus próprios nomes, quando as
pessoas - umas por brincadeira, outras por maldade mesmo -, faziam menções
irônicas ou de forma pejorativa de seus nomes. Vevê, entre as irmãs, tinha um
nome digno de sua pessoa e fazia parte de uma inexplicável exceção.
A
desgraça de tudo isso, portanto, teria sido o pai delas, Pindaíba Pindaí. Este,
toda vez que nascia um rebento, convidava os amigos para o “mijo do menino”
(mesmo que nascesse menina). E, ali mesmo, no boteco de Jericocó, era cachaça a
noite toda e, de cara cheia, no dia seguinte, ainda bêbado, ia para o Cartório
fazer o registro dos recém-nascidos; nesta altura já havia perdido o papel que
o levava com o nome da(o) filha(o) escrito; e, com o juízo amolecido pelo
álcool, confundia, enrolava tudo na hora. Por isso, deu exatamente no que deu.
A
filha mais velha de 20 anos - se não fosse o imperdoável erro do pai - se
chamaria Bósnia; a sua irmã encostada seria Cottoly; a outra, Perlla, e o
irmão, de 21 anos, seria Fibbel.
Vevê,
por ser a mais nova, se salvara por graça de Inferta que, desta vez, foi quem
tomou a frente do amante para ir ao Cartório. Certamente, por um milagre,
Veraluz se salvara da injustiça dos nomes dados pelo pai - “cu-de-cana”, por
natureza - a suas irmãs, as quais, não tiveram a mesma sorte sua. Sim, se
existia alguma coisa que elas jamais iriam perdoar o seu pai, justamente, seria
a injustiça de ele lhes ter trocado os seus benditos nomes.
Vevê
se vira livre do nome, mas não escapara da sina.
E
quanto a Inferta, este não existe explicação, cogita-se apenas a possibilidade
de ser uma corruptela da palavra infértil talvez, aquela que não gera.
Se
existe vida sofrida no mundo esta não é a de Idiotina, mas a da pobre e pequena
Vevê, sua filha, a qual repudia todos os comportamentos vividos no âmbito da
sua família. Uma desmoralizada vivência que, sequer, dá para narrar tim tim por
tim tim. Estes ela guarda no âmago do seu coração amargurado.
Apesar
dos pesares, Vevê não é uma menina normal, e, a sua anormalidade se caracteriza
em sua religião, protestante, pois é a única que, por intermédio da sua fé,
consegue sonhar. Sonha em trabalhar só para ajudar a sua sofrida mãe. Tem
desejos e muitos sonhos. Pensa diferentemente das suas irmãs. Enquanto a mãe
aceita, submissamente, as imposições e estupidez do seu pai, ela o abomina
desgraçadamente, em ter que ver a sua mãe dividir a mesma cama com outra
mulher.
“Meu
Deus, como pode acontecer uma coisa dessa! E, ainda por cima, ter que apanhar. Sem contar que a cada nove
meses, sempre tinha que ter um filho”. Vevê reprovava, radicalmente, tudo
aquilo que via dentro da sua casa.
Certa
vez, a sua mãe querendo lhe dar um pouco da sua minguada educação. Disse-lhe que,
quando ela se casasse e o seu marido lhe viesse bater, pudesse deixar porque
todo homem sempre tem razão. É sempre ele quem faz a lei dentro de casa.
Vevê
achou aquilo o cúmulo do absurdo. E surda se fez ao que a sua mãe lhe dissera,
porque se calara. Sem dizer palavras pôs-se a chorar. Procurava encontrar, na
terra, respostas para tudo aquilo. E refletia querendo entender sobre o tipo de
mulher que era a sua mãe, para aceitar tantas desgraças, com tanta submissa
naturalidade e inocência humana.
A concubina
de Pindaíba era como se fosse uma visagem, ou seja, um mau encosto para Vevê,
mas uma sombra do bem para Idiotina; Inferta era uma “anja”, como dizia sua
mãe. Ela era o bem e o mal de tudo que existia dentro daquela casa. Para Vevê,
Inferta seria o anjo decaído.
Inferta
não podia ter filhos e se via realizada em cuidar dos filhos de Idiotina. Era
como se Inferta fosse a empregada dela (Idiotina). Mas, como a amante de
Pindaíba, sentia-se a própria mãe dos filhos de Idiotina. Esta agradecia a Deus
por Inferta lhe ajudar no seu parto e durante o tempo em que estava de
resguardo. Pois, com ela ali, ao seu lado, teria a garantia de que Pindaíba não
teria que sair com qualquer vagabunda, qualquer rapariga por aí.
E chegava a boquinha da noite. Ali, estava
Pindaíba, todos os dias, sem falhar um dia sequer. Estava ele, ali, a encher
Inferta de amor e de filhos, Idiotina. E nenhum tiquinho de ciúme aflorava no
coração nem duma nem doutra.
Aos
treze anos de vida Vevê arranjou um namorado. Era irmão. Ou seja, fazia parte
da mesma Igreja sua. Um rapaz digno da sua pureza, da sua ingenuidade. A
justiça divina alumiara o caminho para encontrar a pessoa certa no lugar certo.
O homem que lhe iria salvar daquele “antro de perdição”; que iria lhe proteger
e lhe isentar de qualquer sedução ou desvio mundano. Desvio este, tido nos
exemplos das suas irmãs. Não as da igreja, mas as da sua casa, as de sangue
seu. Bom, desvio mais para seu namorado e ela. Porque para as meninas, suas
irmãs, Vevê foi quem se desviara; se desviara de religião primeiramente, agora
de vida.
“Ah,
a idiota está a namorar um crente. Coitada!”
Diziam
as irmãs irmãs.
Fidder
era o nome do seu namorado. Tinha um trabalho digno, terreno para construir. E
isto, para Vevê, já lhe era de grande valia. Poderia sair de casa e morar no
que era seu. Poderia ser chamada de esposa e ser uma dona de casa para poder
criar sozinha os seus filhos... Fidder era tudo que ela possuía em sua vida
agora. Amava-o como a sua própria vida ou mais que ela. Só não gostava de
Fidder, quando este a impedia de representar a peça religiosa na igreja. Achava
ele muito ciumento. Nessas horas fazia-se exigente em demasia, e, às vezes,
estúpido como todos os homens...
Aí,
Vevê percebia em seu príncipe a mesma figura do seu pai e, nela, a de sua pobre
e miserável mãe. Batia-lhe no coração um desgosto, e só pensava em abandonar
tudo a viver sozinha, enclausurada, a pedir em oração a N. S. Jesus Cristo, por
uma vida melhor, e ser para Ele, apenas, a sua eterna criada, mulher de Deus.
Vevê
sempre percebeu a necessidade que passava em casa com a sua mãe sempre
reclamando sem ter o que comer. Seu pai há um mês que não aparecia em casa;
fora pescar lá para as bandas da costa do Ceará. Foi o que dissera antes de
sair de casa. E já deixava todo mundo preocupado, apesar de não ser a primeira
vez que isso acontecia. Restava saber se ele estaria mesmo no mar ou, na
verdade, em algum bar.
Vevê,
contrariando o namorado, decide trabalhar. Arranja um trabalho num consultório
odontológico na Cidade Alta, na Av. Rio Branco. Ela acabou de fazer dezesseis
anos e a natureza se incumbiu de moldar a beleza sutil, como a que aflora em
toda menina, que atinge essa idade. Mas ela se revestia de uma beleza
irradiantemente insólita.
De
corpo esbelto - as mesmas canelas de maçarico -, mas proporcional a seu físico;
esboça uma beldade peculiar de pré-adolescente. Cabelos lisos longos em vestido
longo também. Tais características lhe garantiram o emprego no consultório do
Sr. Zemil. Se não fosse crente, certamente, seria uma boa candidata às
passarelas do sucesso. Que Deus seja
louvado! E que a proteja dessa perdição de mundo mundano, basta o que ela já
tem visto - dentro da sua própria casa - e mesmo assim, ainda mantém intacta a
sua pureza, a sua virgindade. Aleluia! Aleluia!
Todavia,
para Sr. Zemil, jamais despertou tamanho interesse de beleza por suas
secretárias, mas achou em Vevê algo mais que uma simples menina de dezesseis
anos. Viu-a uma virgem em jeito, em cor, em forma, em estilo nos cabelos, na
face, no corpo.
Pois,
no seu todo de menina, havia uma coisa única, inusitada e muito peculiar. Vevê
tinha uma leveza sutil na fala, no andar, no olhar que parecia ter adquirido,
especificamente, na sua religião, sua igreja. O interessante é que, quase todas
as meninas, evangélica, da sua idade, se revestiam desse mesmo aspecto de
transcendental pureza aparente. Mas ela não. Ela era distinta. Sem aparência
nenhuma. Era puramente essencial.
Era
justamente isso que a fazia diferente de todas as beldades que ali passaram na
clínica de Sr. Zemil. Vevê se revestia realmente da pureza das virgens, que se
acentuara mais ainda por ser evangélica, protestante, da igreja Assembleia de
Deus.
Sr.
Zemil era homem de respeito, por isso, Vevê lhe falara de trabalho. As meninas
as quais haviam trabalhado com ele e que ela as conhecia, lhe deram boas
informações sobre Sr. Zemil. Inclusive, uma irmã da igreja a que lhe indicara o
emprego.
Sr.
Zemil tinha família. Era bem casado. Tinha três filhas e uma esposa muito
bonita. Era um excelente dentista e, acima de tudo, uma extraordinária pessoa.
Respeitado e amado por muita gente, inclusive, por pessoas carentes. Pois
prestava serviços à comunidade carente por bel prazer. Isso o fazia um homem
distinto. Aqui estava o seu talento e maior prestígio. Visto que, tudo isso,
não fazia por interesse político, mas por ser dotado do fazer caridade.
Certa
tarde, como ele sempre fizera com os seus empregados dantes, Sr. Zemil foi até
a sala da sua nova secretária. Era a primeira semana de Vevê no trabalho.
Entrou, de súbito, que ela se surpreendera. Ele pediu mil desculpas,
educadamente, por ver que ela estava a ler a pequena Bíblia de bolso, a qual,
ela sempre a deixava aberta sobre a sua mesa na página do Salmo 23: “O Senhor é
o meu Pastor...”
E,
como era de se esperar, Vevê ficara encarnada de vergonha e sem palavras. Mas
as palavras do próprio patrão lhe serviram de calmante. Ela se recompõe do
susto e se sente à vontade, quando ele se senta na cadeira, igualmente, a um dos
seus clientes em consulta. E Vevê, agora, estava segura. Porém, ele, com os
olhos seus fixos nos olhos tímidos dela, não disse mais palavra alguma. E foi o
silêncio mais conturbador que ele já sentiu em toda a sua vida. Vevê o esperava
que falasse, e ele, terminou por dizer - se desculpando, é claro - que se
lembrara da reunião marcada para aquela hora, que depois voltaria a conversar
com ela.
Vevê
não se incomodara nem um pouco. Pois sentiu na voz do “doutor” o mesmo carinho
e respeito que ele sempre teve por ela. E, justamente, ela havia agendado
àquela reunião.
Na
reunião, Sr. Zemil não estava de todo. Parte ficara no consultório. Estava a
admirar a boca de um paciente. Aliás, de uma. Dentes brancos e perfeitamente
alinhados, numa boca que exalava um odor agradável de caldo de cana fresquinho.
Ele a segurar a bela mandíbula macia, desviava o olhar para os olhos
semi-cerrados da paciente. Em seguida, estava a afagar os ébanos cabelos da
própria Vevê, a sua secretária. Por
várias vezes procurou se concentrar na reunião. Mas a imagem que lhe vinha era
muito mais forte e de um prazer arrebatador, o qual terminava por roubar a cena
daquela reunião enfadonha. Esquecer era
possível. Mas tentou apagar e não conseguiu. Só conseguiu de todo quando a
reunião realmente encerrou.
No
dia seguinte, à tarde, Sr. Zemil deu vazão à conversa que prometera à
secretária. Apenas algumas recomendações de praxe. Em seguida, conversaram
coisas aprazíveis. Relativas ao trabalho, à família, e, acima de tudo, à
Igreja.
Pois
“doutor” Zemil era também evangélico, da Batista. Mas andava afastado em
detrimento dos afazeres que assumira do próprio ofício. Vevê se sentia segura e
protegida, porque Sr. Zemil lhe era mais que um patrão. Um homem que lhe dava
bons conselhos só poderia ser um amigo, um bom amigo.
Visto
que, o seu pai, nunca lhe aconselhara em nada e para nada. Ao contrário, só via
dele maus exemplos. Dele, e das demais pessoas de lá. A conversa se estendera por duas horas.
Sr.
Zemil contara a história da sua vida. Disse que nasceu e morou no interior do
Ceará, Juazeiro. Era devoto de Padrinho Cícero e nunca perdeu uma missa aos
domingos. Tudo isso, graças à sua mãe, terminou sendo mandado para o Seminário
e se tornara padre. Uma história muito longa. Anos após, descobriu que não
servia para o Celibato. E se converteu para Igreja Batista. Hoje, se esforçava
para ser Pastor. Era só abdicar de alguns excessos proporcionados pelo ofício,
que passaria a se dedicar mais à igreja.
Vevê
ficara encantada com o testemunho, a história do seu Zemil, que as horas se
passaram e ninguém percebeu.
Sr.
Zemil se despediu da secretária e saiu. E Vevê, leve como uma plumagem
levantou-se levitando a entoar um belo hino da sua igreja e foi para casa
felicíssima.
As
coisas, como sempre, não andavam muito bem na casa de Vevê. Há mais de uma
semana que não se tinha o que comer dentro daquela casa. Encontrava-se a
mistura facilmente, era só ir ao mangue pegar alguns aratus e caranguejos, mas
o arroz, o feijão, a farinha não. Estes eram difíceis se arranjar, às vezes,
tinha que se pedir. E, Vevê quase não conseguia se levantar pela manhã para ir
ao trabalho. Tomava um caldo da caridade, um reforçado cabeça-de-galo, mas era
a sua oração, a sua fé - o alimento da alma - que a conduzia até o trabalho.
Dentro
do ônibus lotado, de quando em vez, vinha-lhe o escurecimento de vista e dava
graças a Deus quando chegava ao consultório. Ali, ela ia até a cozinha, a
copeira lhe dava uma xícara de café com um misto quente, e assim, ela matava
quem estava a lhe consumir as carnes. Porque era a sua bendita alma que lhe
sustentava a vida.
Todavia,
ela não mais podia esperar pelo seu pai para botar comida dentro de casa. Teria
que tomar uma atitude. A mãe, a outra, o sobrinho, a irmã todos a esperarem por
comida e nem o cunhado nem o pai traziam-na.
Vevê,
no fim da tarde, decide falar com o patrão para que lhe adiantasse um vale. E
quando procurou lhe dá explicação, Sr. Zemil não quis saber e foi logo
assinando um cheque o qual lhe passou a suas mãos.
Pois,
já era do conhecimento de Sr. Zemil a vida sofrida que Vevê passava. Conhecia
todos os desajustes da sua família, porém nunca sequer Vevê lhe contara nada.
Talvez, a irmã a que lhe indicara o trabalho lhe tenha contado tudo. Vevê, por
sua vez, achava melhor que fosse daquela maneira. Não gostaria de repetir a sua
merencória vida para ninguém, mormente, para o Sr. Zemil que era um patrão tão
bom, para ela.
Faz
dois meses que Vevê trabalha no escritório de Sr. Zemil. E, também, há dois
meses que a vida do quarentão havia mudado taciturnamente. Zemil andava muito
estranho, isto é, para a sua esposa e filhas. Todavia, era uma estranheza
agradável, quase imperceptível, para ele; menos para ela (sua esposa), que por
sinal, havia dado à luz e se recuperava de uma cirurgia. Pois, tinha o sexto sentido bem aguçado, para
essas mudanças do marido. Ela não era nada boba não.
Dona
Vertu deu à luz e por três meses teve o merecido repouso pós-parto. Pois teve
que passar por uma cirurgia - cesariana - muito delicada. Zemil, como marido
exemplar, deu à sua esposa toda a assistência devida. Era o primeiro rebento de
sexo masculino, fora a sua última tentativa para que viesse um homem na
família. E por desejo seu e sorte sua o veio. Agora a prole crescera, eram três
meninas e um menino. Este seria o seu sucessor que iria seguir a máxima bíblica
“Crescei e multiplicai”. Sr. Zemil não era de ficar a dizer isso, mas calava-se
consentindo com o seu afã de macho.
Dois
meses, e o seu estranhamento agora, agredia com prazer o seu coração, a sua
cabeça, o seu todo de homem. Procurava arranjar alguma explicação para tudo
aquilo, mas não conseguia. Era a imagem de sua secretária que lhe entrara na
vida, sem a sua permissão.
Suas noites eram de sonhos intermináveis a galopar
num corcel por estrelas, asteróides e planetas. Era uma sensação
transcendental, tal qual, a que sentira no auge da sua révora, a mais de trinta
anos atrás. Era como se estivesse a rejuvenescer e, com isso, a conquistar a
sua primeira namorada. Quão bela, quão meiga como fora há vinte anos a sua
Vertu. Porém, toda essa beleza, toda essa meiguice fora transferida para a sua
próxima e tão distante secretária Vevê. Pois então, era esta jovem a qual
estava a lhe fazer resgatar os desejos latentes e mais genuínos, os quais foram
vividos em sua doce adolescência tão distante.
Por
dois meses sonhou com Vevê mais do que já sonhou com a sua Vertu em doze anos
de casados. Eram sonhos em que, como homem de sua idade (quarenta e cinco), de
sua formação, de sua índole parecia ser uma coisa muito louca. Uma tentação.
Mas, acima de tudo, aceitável para quem vive uma paixão.
Certa
vez, sonhou fazendo amor com uma jovem, a qual, não lhe revelava o seu rosto;
revestida de um véu negro, apenas o seu corpo se expunha numa nudez límpida de
princípio dos princípios de virgem.
Tudo
era como se fosse o primeiro tudo de um todo. O primeiro desabrochar de flor
mulher no éden do afã de Zemil, a primeira essência, o primeiro fruto de amor
germinado na terra. O distante éden.
Uma
brisa leve e breve, a sussurrar no seu corpo e no da virgem que, de súbito,
ergueu com certa leveza o véu negro e a fez mostrar o semblante mais belo que
os seus olhos já viram. Tinha o reflexo dos seus olhos os olhos dela, mas
aquela sutileza de mistério não lhe era de todo mistério, algo peculiar lhe era
aos seus sentidos. O cheiro, o toque, aquele súbito olhar, eram-lhe os mesmos
dos de sua adolescência, e ele tinha toda certeza disso. Ela era a mesma de
quando conheceu a sua Vertu, quão bela, quão meiga como só ela mesma.
Certamente era ela, a sua Vertu, fazendo-se obscura como em todo sonho. E ele
tinha toda certeza de que não estava acordado.
Portanto,
a natureza se incumbiu de lhe revelar a verdadeira face da misteriosa mulher,
quando um vento mais que proposital arrancou-lhe o negro véu do rosto e, ali, à
sua vista, se expôs belo, monumental e transcendental semblante, na completa
nudez de Vevê, que estava tão explícita quanto qualquer realidade. Zemil se
deleitara e acabara de fazer amor como sempre fizera. Sentira-se leve pelo
gozo. E, o coração, agora, batia no compasso da paz dos mortais...
Estava
suado e percebeu, também, que estava completamente molhado. Ensopado, como
nunca havia ficado após ter crescido. Foi aí, que se lembrou da sua terrível
infância, quando ainda fazia xixi na cama.
No
dia seguinte, quando Zemil chegou no consultório, não conseguiu nem olhar na
cara de Vevê. Pois estava com um profundo sentimento de culpa terrível. Foi
direto para sala de trabalho, nem bom-dia conseguiu dar a sua secretária. Ela
mesma ficou muito sentida sem conseguir entender a atitude do seu patrão.
Ainda
era manhã, onze horas, quando ele lhe foi fazer a visita de praxe, que sempre
fizera à tarde. Mas Vevê, para ele, não tinha mais o encanto, a beleza que
sempre admirara de ver nela. Ela era, agora, uma mulher como todas as outras do
mundo, comum e com as mesmas trivialidades desgastadas e enojadas de
sempre.
Não
teve muita conversa com Vevê. Já chegara ali decidido ao que viera fazer e fez.
Demitiu Vevê sem nenhuma explicação aparente. E isso foi muito doloroso para
ela. Feriu-lhe bastante. Uma verdadeira falta de consideração. Uma atitude
covarde e cafajeste.
Vevê
transtornada de dor, tomada por um sentimento cruel e devastador, como se tudo
fosse rasgando-lhe o corpo, o peito, a lhe retirar o coração, assim a ferro e
fogo, a sangue frio, triturando-lhe a carne (está vil e inútil matéria que não
passa de pó). Aí, lembrou-se do versículo: “Viste do pó, és pó e ao pó
retornarás”, e sentiu que só a sua alma suportaria toda aquela dor. Aquele
sofrimento, que ora a carne, o corpo, a matéria sentia. Não ela. Ela não era
nada disso. Nunca precisou dessa coisa efêmera. As suas fomes lhe ensinaram a
valorizar a alma. Sim, era feita de espírito, de alma. Assim, ela se acostumara
a Ver e Viver a sua vida. Alimentando-se sempre de oração, fora feita para
eternidade e não de efemeridade.
Vevê
ainda aos olhos do Sr. Zemil, parecia se revestisse de uma lividez
transcendental, que ele se assustara em vê-la daquele jeito, tão transfigurada.
Ela estava pálida, tão branca, tão transparente em seu vestido
branco-neve-nuvem, quando caminhava em direção à porta, que ia como se a
estivesse levitando tão suave, tão leve como uma pluma-pena. Mas ela não era
pena, tinha pena, estava repleta de pena mesmo era do seu patrão, do seu pai e
todos os homens.
Bem
que, Zemil, quis lhe falar algo, mas ela não tinha mais nada a que ouvir dele.
Ela não tinha o direito de tê-lo como patrão, nem como amigo, nem como irmão e
nem tampouco como pai, como aquele que, às vezes, lhe dera conselho. Não, não
nascera para ter esses elos, essas relações tão comuns para uma existência
humana e tão insólita para com ela.
Desceu
as escadas e, quando chegou à praça, a qual ficava ao lado do prédio, no qual
trabalhava, ouviu o soar suave do sino da Igreja matriz. Estava começando a
bater as doze badaladas do meio-dia. O som, perto-distante, do sino fazia
lembrar uma canção que ela gostava sempre de cantar quando estava a caminhar.
Então, ela, seguiu a entoar o seu hino e, muitas vozes a lhes acompanhar, como
sendo uma miríade de anjos.
A
rua, ao meio-dia, não havia muitas pessoas, mas as poucas que estavam por ali,
sentadas na praça, ficaram encantadas, extasiadas com o que viam e não acreditavam.
Era a
moça de cabelos e vestido branco longos que cantava um hino muito bonito, porém
o seu canto ecoava juntamente com muitas outras vozes que vinham do além. Eram
como vozes de anjos, milhares delas, com uma música acompanhada pelo sino e,
também, algumas trombetas. Ninguém conseguia ver, - mas não precisava - as
pessoas estavam a se deleitar da música, do hino que era cantado belamente por
Veraluz.
Isso
não durou não mais que três minutos, o tempo suficiente para uma música entrar
no coração e na alma de um ser e lhe fazer sentir a felicidade da paz, da
solidariedade e do amor. Quando a canção
encerrou, a cantora já estava a transpor a nuvem, a única nuvem que passava
naquele céu azul, num sol de 34oC.
Sr.
Zemil, que havia escutado o alvoroço do povo lá embaixo, resolveu sair no hall
do prédio, para se certificar do que realmente estava acontecendo. Lá chegando,
não acreditou no que viu. A poucos metros de onde estava, viu uma mulher sendo
elevada para os altos por uma miríade de anjos luzidios, celestialmente.
Profundamente,
contrito, assistia à cena com lágrimas nos olhos. Chorou como todos os homens
choram: escondido. Mesmo assim, ao chegar à casa, a sua esposa inquiriu-lhe
sobre os olhos inchados e ele contou-lhe o ocorrido presente, menos o
pretérito.
Após
esse dia, Zemil tomou uma decisão extrema na sua vida. Abandonou o oficio de
Dentista e foi ser pastor na mesma Igreja na qual Vevê sempre frequentava. E o
seu mais belo testemunho, o qual, o fez retornar à Igreja não a outra, mas esta;
foi o de ter conhecido um anjo. Um belíssimo anjo.
E,
assim, todas as vezes que abre o seu sermão, é fazendo referência a esse mesmo
mirífico anjo de luz celestial. Porém, nunca ousou em dizer que o anjo se
chamava VERALUZ.
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