APRESENTAÇÃO
“...silencie
seu coração e ore por seu inimigo.”
“Assusta-me
ver mulheres emancipadas caracterizadas de homem com espírito beligerante. Pode
ser o fim da dita racionalidade.”
“As
pessoas se diferem na pele, na língua; menos no coração e na cabeça...”
Emecê
Garcia
Criar
histórias ou adaptá-las é emprestar sua vida, sua energia, sua alma, seu credo
às personagens, às situações que se descortinam na cena do enredo da trama,
quer seja em verso ou em prosa.
Não
há fórmula para se dissociar ou romper-se a relação intrínseca que há entre
criação e subjetivismo do autor em qualquer área da produção artística.
Quem
escreve literatura sempre fala de temas que lhe tocam o coração, a alma.
Assuntos que impressionam seus sentidos, sua atenção e provocam, em seu
eu, sentimentos múltiplos, convergentes ou divergentes de emoção, de comoção,
de arrebatamento, de paixão dentre outros mais. Essa leitura leva o artista a
se expressar.
O
labor da escrita, naturalmente, conduz o operário da caneta à busca do
aprimoramento da sua obra em prol da estética. Roupagem final a ser apreciada pelo
leitor.
Em
Contos Femininos e Outros, o escritor e poeta potiguar Maurício Cardoso
Garcia com habilidade e maestria de conhecedor da arte das letras narra
apaixonadamente histórias de mulheres penetrando profundamente em suas
essências femininas. São textos fluentes. Sempre na primeira pessoa. Mulheres
falando de si e dos que a cercam. Apenas um conto é dedicado a um homem, porém
esse homem é mero observador da vida e das mulheres que estão em torno de si.
Nota-se a presença marcante de termos regionalistas adequados a geografia
humana e espacial de cada conto.
“O
homem calado não resistiu àquele genuíno olhar e aí, lágrimas jorraram dos seus
olhos, assim ele deu Glórias e, só Deus e o anjo sentiram.” – M. C. Garcia
Contos
Femininos e Outros trata das questões ligadas à liberdade, ao
respeito, à dignidade, ao direito de escolha da mulher. Evidencia em suas
relações a luta pela sobrevivência frente ao autoritarismo do machismo na
figura do pai, do marido, do abandono. Todavia, também ressalta o homem companheiro,
amigo, apoiador dessa brava mulher que deseja trabalhar, cooperar com o
sustento da família, mas que necessita de carinho, atenção, apoio.
“Dona
Florisbela, a minha mãe, seguia cheia de uma paz que nunca sentira antes.” – M.
C. Garcia
São
narrações agradáveis e empolgantes, recheadas com poesia. Argumentações
filosóficas, políticas e religiosas como a própria vida. Planta-se na semente
crua da realidade sem largar o brilho do ideal feminino.
Jania
Souza
Poeta
e Escritora
PREFÁCIO
Dois sentimentos invadiram a alma
quando recebi o convite de Emecê Garcia, para fazer o prefácio desta belíssima
obra, mais uma de suas criações: alegria e medo!
Alegria porque Emecê é para mim um
irmão, velho e grande amigo. E como é bom ver nossos amigos realizarem seus
sonhos! Medo, porque conheço minhas limitações e, dentre estas a dificuldade de
expressar por meio da palavra escrita. Mas como a obra da qual estou incumbida
de prefaciar nasceu de um coração livre, sinto-me livre também para deixar meu
coração falar.
Emecê para mim é um artista, poeta,
escritor, .... E nesta obra intitulada CONTOS FEMININOS E OUTROS, o autor foi
capaz de contemplar seu amor, seu carinho, seu brilho, seu fascínio pela figura
feminina e também a do macho escondido nas saias das mulheres. Nela ele colocou
a dor, alegria, emoção, suspense; ele faz perceber que na fidelidade e
infidelidade de cada mulher há um lado guerreiro Deus e guerreiro demônio
escondidos; isto, no seu jeito esperto de ouvir as conversas das amigas
mulheres e transformá-las em escritos.
Como leitora do autor, sou suspeita e
tenho autoridade para falar que meu amigo refaz trajetória de outras obras suas
que já li até os dias de hoje, cito alguns exemplos como: Confissões e Confusões
que leva outro título: As confissões de Jovelina, as poesias que falam de amor,
de ser amada quando próxima ou distante. Encontrei nesta obra prima um dos mais
belos cordéis, uma de minhas paixões UM CACHO DE FLOR DA VIDA onde ele retrata
a beleza da mulher mãe que gera e guarda a vida. Entre outros...
Meu Deus! se eu fosse escrever toda a
beleza escrita aqui, seria um discurso, não um prefácio, porque tem muita coisa
boa e bela neste livro
Termino esta pequena apresentação
deixando e desejando para todos (as) que façam uma boa deleitura, divirtam-se,
viajem nos contos e nas poesias aqui apresentados e recriem porque para os
poetas, escritores é fácil. Para mim, simples leitora, não.
Boa leitura para todos (as)
Maria da Apresentação (Leitora amiga do Emecê Garcia)
A MORTE ENSINA A VIVER
A
MORTE ENSINA A VIVER. Esta expressão é minha. Eu acabei de criar. Veste-me quão
bem à própria pele. Sócrates, Shakespeare, Galileu, todos criaram suas máximas.
Então, senti o mesmo insight. Eu era
muito pequena, quando senti o fardo da vida nas costas. Sou nordestina. Nasci
numa terra árida, esturricada, dura igualmente o coração de muitos homens,
inclusive o do meu pai. Como Deus criara gente tão rude, tão braba e ignorante?
Deus os fez mansos, mas eles se fizeram assim. Aprendi que a seca era um ciclo.
Ora pior que o Saara, ora melhor que a Amazônia. Porém, o coração do homem não,
é sempre a mesma patifaria. Pense a realidade complexa da natureza humana? Eu
era uma criança muito calada, igualmente uma estátua. Imagine a escultura de
Rodin. O que não falava explodia dentro de mim e saía pelos meus poros: cabeça,
ouvido, pele, nariz, olhos. Eram os meus sentidos a gritarem. Como ninguém me
ouvia, inclusive os adultos; passei a falar com as árvores, os rios, as
plantas, as flores, os pássaros, os animais. Transformei-me numa franciscana
sem saber. Quando não conversava com a natureza eu pensava; pensava, pensava
até o sono me pegar. Pegava-me e eu me deixava levar. Muitas vezes me levou a
lugares que nem imaginava. Tudo começava como se eu estivesse num sonho. Uma vez,
foi debaixo do pé de jasmim; outra vez foi na beira do riacho; outra foi no
jardim de casa. Mas antes, eu inventava umas histórias; criava umas poesias e
até músicas eu cantava. Canções diferentes das que mãe cantava pra mim. A minha
cabeça era uma fábrica de fantasias, uma fábula só.
Nasci
praticamente dentro de uma igreja. Mamãe estava na missa de barriga pela boca e
teve que sair às pressas pra eu nascer. O hospital ficava ao lado da igreja. O
padre fazia a homilia do menino Jesus. Assim, eu vim ao mundo no dia 25 de
dezembro, num domingo, às nove da manhã. Foi aquela festa no hospital. O povo
da igreja foi visitar a minha mãe, não levava ouro nem prata, mas roupinhas,
sapatinhos de lã para uma menina, nem pobre nem rica, simples. Vestida de
roupinhas azuis, eu me senti a menininha de Deus!
Senti
uma sensação extraordinária quando eu aprendi a ler. Encantei-me
inexplicavelmente por um amigo fiel: o livro. Este, depois de Deus nunca me
deixou sozinha, Deus surgiu na minha vida, antes mesmo de falarem para mim. Eu
sinto que foi quando mamãe saiu da igreja para maternidade. Entre três e quatro
anos de idade, subia num tamborete, pegava um livro bem grande, que vivia
aberto sobre a mesa e passava horas a folheá-lo. O interessante é que quase
ninguém o lia. Mas, uma vez ao ano, o
padre vinha lá em casa, abria o livro e lia a mesma passagem do dia em que vim
ao mundo. Era meu aniversário e repetia o mesmo sermão. Descobri que se tratava
da Bíblia e que Deus além de morar na natureza, também morava naquele bendito
livro. Por isso, sentia a mesma sensação de quando conversava com a natureza.
Para
mim, mesmo errada a morte é certa. Disso tenho plena convicção. Quando criança,
eu senti a morte quase na própria carne. Vi a esfomeada devorar uma ruma de
gente. Uma fome pior que o sol nas plantas e na terra; pior que a nossa própria
sede. A maior crueldade foi quando ela levou meus irmãozinhos e nada pude
fazer. Mas pudera, eu só tinha nove anos. Aí, vi que nem gente grande a encarava.
A sua crueldade levava até os mais fortes. Quando ela ceifou o meu avô, a minha
tia segunda, seu Josias, todos octogenários. Pensei que ela fosse boazinha e só
levasse os velhinhos. Estava piamente enganada. Nem padre, nem rezadeira, nem
freira, nem pastor, nem bispo nem ninguém conseguia ressuscitar os bebês.
Ficava pensando: Cristo ressuscitou Lázaro, Tabita e a Ele mesmo. Mamãe rezava
tanto, não chegava um ano de vida, a esfomeada vinha e levava a sua cria. Muitas vezes vivo a matutar o porquê de ela
levar as crianças, com tantos adultos chatos no mundo. Por aqui, os bebês que
morrem chamam de anjo. Ainda bem que são anjos. Aprendi que aqui é lugar de
gente e não de anjo. Por isso, que eles iam logo embora. Mas me doía na alma
vê-los indefesos. Minha mãe coitada, nem falo. A pobre ficava trancafiada
dentro do quarto horas e dias a chorar pela perda. Nem rezava mais... Meu pai
parecia um bicho bruto a reclamar dela. E sequer uma gota nos olhos pelo filho.
A
morte dos outros me ensinou a viver. Aprendi a conviver com a morte. Nunca me
assustei com ela. Bem sei que ela vive – a morte tem vida própria – e me ronda
dias e noites. Desvendei que ela é sínica, se reveste de várias faces. A
miséria é uma delas, a outra, é a falta de esperança e por fim o medo de lutar.
Sim, ela engana o homem a permanecer na miséria. Por causa de mamãe, pai
resolveu arribar da terra. Botou a gente num pau de arara e rumou pro Ceará.
Lá, a gente sofreu a mesma sina de dor e de seca. Mamãe grávida, mais uma vez,
não resiste; e é levada juntamente com seu décimo quinto rebento. Agora, sem
ela, a fuga para Pernambuco. Por fim, pai retornou para nossa terra. Chega um
dia a morte se cansa e deixa a gente em paz e a gente aprende a viver.
Muito
nova aprendi a ler. Aos doze ensinava meus irmãos. Aos quinze virei professora.
A primeira escola foi a minha casa. Enquanto o povo morria por água; eu
definhava de fome e sede de saber. Queria conhecer tudo e sobre tudo; e como
pouca gente sabia inclusive minha professora, terminei por devorar os livros da
biblioteca da escola. Li romance, contos, crônicas, poesias; história,
geografia, biologia, sociologia, psicologia. Quando não mais tinha o que ler eu
passei a escrever. Aí, se deu a grande mudança na minha vida. Com a escrita
criei um mundo só pra mim; tudo que sonhei, imaginei como criança passou a ter
vida. De pensadora de Rodin à escritora sertaneja. Esta terra que tantos
abominavam, passei a vê-la com os olhos da poesia. Vi que a miséria não era a
terra, mas os próprios homens. Estes sem perspectivas viviam na cegueira. O véu
da ignorância, da incipiência e da falta de estudo os impedia de ver a beleza e
riqueza da terra. Aprendi nos livros: a seca ou as enchentes é um fenômeno
natural; existe desde que Deus fez a terra. Mesmo que a igreja pregasse a
verdade, o povo vivia a espera de milagre na pedra de sal, em São José e outros
santos. Nas aulas que dei, mudei a cabeça de muita gente; o sertão passou a ser
mais amado. De menina percebi que o mundo estava errado; começando pelos homens
e depois pelo que eles haviam feito com a terra. Sim, digo com Gaia e por
extensão a mim, enquanto mulher, mãe, nordestina. Desde pequena sonhava mudar o
mundo. Ao menos, o mundo do meu lugar. Fui chamada de doida por colegas, por
parentes e por meu pai. Este, não se cansava de dizer:
- Você
é louca! Mulher foi feita pra viver na cozinha; a cuidar de casa, de filho e de
marido. Estudo é pra homem frouxo, que não gosta de trabalhar, como o filho do
compadre, esse tal doutorzinho, do coronel Bartolomeu.
Nunca
dei ouvido ao que meu pai dizia. Ele sabia que eu era diferente das outras. Eu
era a mais nova e sabia que descortinava um novo mundo. Sempre andei na frente
feito bengala de cego ou feito enxada de agricultor a desvendar caminhos novos;
não adiantava indicá-los pras minhas irmãs; pra quê? se elas não davam ouvido a
uma demente. Aos poucos percebi que o povo não arribava mais do sertão. Muitos
que haviam partido, agora, estavam de volta. Era gente vinda do norte e do sul
pra terra de origem. Muitas formas de viver foram criadas. Barragens, açude,
irrigação, poços artesianos, cisternas. Era bonito se ver plantações de manga,
caju, melão, melancia, jerimum, pinha e até de uva. O Nordeste, assim como
Israel, passou a produzir riquezas da terra. Criaram escolas de primeiro e
segundo graus. Cheguei à diretora nas duas escolas. Montei museus, bibliotecas,
destaquei os talentos locais; muitos jovens só saíam da cidade para fazer o
terceiro grau na Universidade do Estado.
Envolvida
nas coisas sociais e educativas, não vi o tempo passar. Só eu de solteira em
casa. Vinte e oito anos de idade. Uma grande preocupação para o meu pai. Eu não
tinha tempo de pensar em casamento. Via em cada aluna, uma filha; em cada aluno
o filho que não queria ter de homens como meu pai. Apesar de que, muito homem
amolecera os seus corações para comigo, como foi o filho do coronel Bartolomeu.
O tal “doutorzinho” de meu pai. Um jovem bonito e inteligente que se formara em
Direito. Pro meu pai, nem pensar num desse, entrar na sua família. Mas ele queria
mesmo era me ver casada. Isso sim, ele queria e faria qualquer negócio. E pior
que fez.
Certo
dia, eu estava na varanda a ler Madame Bovary numa rede, quando chegou visita à
procura de meu pai. De soslaio vi um homem alto, de bigode, chapéu de massa,
botas longas, camisa listrada, igualmente caubói. Desceu do carro e seguiu até
a porteira. Parecia que meu pai já o esperava, foi soar a palma ele apareceu no
janelão todo sorridente. O visitante entrou, seguiu para sala e sentou-se na
cadeira de vime. Na rede estava; deitada eu permaneci. Minutos depois, o berro
do meu pai. Só falava aos gritos:
Evaneide!
Ô Evaneide! Vem aqui minha filha!
Seguramente,
adentrei a sala. Ele me pediu para sentar. E com todo aquele sorriso largo,
prazeroso, que ia até ao pé das orelhas. Disse:
Este
é Adãoniram, meu sobrinho; acabou de chegar do Rio Grande do Sul para se casar
com você. Amanhã será o casamento. Eu não quero ouvir lamúrias, nem
lamentações. Já está tudo pronto, será na igreja do Sacramento, às 9 da manhã.
Mandei matar três cabeças de gado e o tocador já está ciente. Pronto pode ir.
Era
um sábado, o último dia do meu descanso. Porém, a morte me ensinou a viver.
10/02/2014
MULHER TODA CORAÇÃO
Ah, como eu queria ser princesa. Ao menos nome eu tenho: Dayane. Foi
minha mãe que me deu. Disse-me que foi de uma que morreu num acidente. Talvez
na Inglaterra. Não me lembro! Também não me lembro de meu pai. Aliás, eu tive
um monte de pai. O pai da minha mãe era o meu pai. Os quatro irmãos da minha
mãe eram meus pais. Esses sim, me davam carinho. Embalavam-me no seu colo.
Dava-me presentes em datas festivas. No meu aniversário eu me sentia uma
verdadeira princesa. Minha mãe me vestia como tal. Eu inventava até coroa para
minha cabeça. Quando fiz quinze anos eu encontrei o meu príncipe. Agora eu me
sentia mais princesa ainda.
Fui educada mais pela minha avó, minhas quatro tias, solteironas, do que
mesmo pela minha própria mãe. Tive as bonecas mais bonitas. Os vestidos mais
belos. Porém, vovó que era muito católica, queria-me freira. Fui batizada, fiz
primeira comunhão, crisma. Não perdia uma missa aos domingos. Bem que eu
gostava de tudo aquilo. Mas vovó nunca me perguntou o que eu queria nem de que
eu gostava. Sempre me deu tudo em demasia. Até mesmo o que eu não gostava. Mal
sabia ela que eu tinha encontrado o que elas não podiam jamais me dar. Da
igreja o que eu queria mesmo era me casar. Ou seja, realizar o meu afã de
princesa. Adentrar a igreja subindo aqueles mil degraus, vestida toda de branco
com véu e grinalda ao lado do meu príncipe amado. Eu princesa Dayane e ele,
príncipe Carlos.
Carlos, o meu príncipe, deu-me tudo que nem meus tios-pais, nem minha
avó, nem minha mãe puderam me dar. Deu-me amor. Profundo amor de um príncipe, a
mim, sua eterna princesa. O sonho de vovó escafedeu-se dentro de mim. Desisti de ir para o convento. Do mesmo jeito
que fizera uma tia minha. E o primeiro beijo que Carlos me deu desvirginou-me
até do sonho de me casar. Adeus fantasias da décima quinta primavera de toda
menina. De princesa me transformei Gata Borralheira. E aqui comecei a viver a
minha realidade. De princesa a mulher inteiramente coração. Às vezes, decepção!
Da igreja o que me restava
agora era só o medo. O medo de me drogar, de me tatuar, de me tornar
alcoólatra, de me prostituir. Deus tenha piedade! O sangue de Cristo tem poder! Vai-te pra lá, esconjuro! Mesmo assim sou
levada a cometer meus pecadinhos. Afinal, eu sou humana! De Carlos ficou apenas
o seu odor nas minhas entranhas, me fez mulher.
Agora o meu coração é todo de
Fernando. Estou madura e sinto o amor que nunca senti outrora. Fernando é todo
carne. Mas enquanto homem distingue-se dos demais. Romântico. Poético. Amoroso.
Quase anjo nas palavras, no olhar, no seu jeito de ser. Pegou-me totalmente
vulnerável. Desprevenida. Eu estava carente daquela natureza de ser. Um homem
inteiro, completo de tudo que eu carecia. Eu era toda metade de mim. Uma quase
nada de mulher. Eu delirava a vagar para lugar nenhum. Até quis pular da Ponte
de Todos. Doze já deram cabo às suas benditas vidas. De repente, uma luz! O seu
olhar penetrante foi como flecha de cupido. Transpassou minha alma juntamente
meu coração de mulher mal amada. De mulher preterida. De mulher segundo tempo.
De mulher migalhas. Sim, assim eu era. Mesmo casada e mãe de um filho. Fruto da
minha demência repentina nas mãos de um crápula. Somos todas loucas! Todas nós
vivenciamos esse ínterim de desvario. E essa espécie de animal dito racional
sabe muito bem disso. Por isso, somos presas fáceis a comermos do pão que o
“nojento” amassa todos os dias com os seus pés de lama ou senão de merda. Até
que um dia a casa cai. E não sobra pedras sobre pedras. Mas Fernando me salvou
do meu suicídio iminente. Deu-me força, luz e muito amor. Eu me entreguei de
corpo e alma. Mesmo assim, não resisti e me suicidei em seus braços fortes. Foi
a minha melhor morte. A minha melhor Newton Navarro de onde saltei sem receio
de morrer. Executei voo livre e me senti levitar como se eu tivesse uma espécie
de asas. Senti-me acolhida por um deus. Ora anjo, ora homem. Quando acordei.
Aliás, abri os olhos, estava nos braços de Fernando.
Meu
éden, ah meu doce paraíso! Por que meu
Deus que a natureza da felicidade é ser tão efêmera? Assim foi com Eva também
tem de se comigo? Tão logo a minha mãe soube do meu relacionamento com
Fernando, minha avó me esbofeteou; minha primeira tia entregou-me ao meu
carrasco; a segunda, aquela que deixou o convento, me colocou a coroa de
espinhos; a terceira jogou o madeiro nas minhas costas; e a quarta tia me
chicoteava quando eu me cansava com o peso do madeiro. E quando já sobre a cruz
recebi o golpe de misericórdia dado pelo meu marido. Meu coração sangrou e eu
acordei ensopada de suor. Um medo terrível se apossou de mim.
Rezei uma dezena
de Ave Maria do rosário, intercalando com Pai Nosso. O inferno de vida que
vinha sofrendo me fez ser evangélica. Agora eu não mais repetia aquelas rezas compridas.
Fazia a oração que meu coração, meu corpo, minha alma necessitavam. Anos depois
não mais curava a minha dor. Passei a ler horóscopo, cartas de tarô. Uma amiga
me convidou a uma cartomante. Uma cigana leu a minha mão. Disse-me que seria
uma princesa. Disse tudo sobre Carlos. Fiquei abismada quando ela falou do
Fernando. Mas como ela sabe tudo isso? Fiquei foi com medo. Como ela sabe tanta
coisa sobre nossa vida e vive essa vida miserável? Por que não melhoraria de
vida? Isso é conversa fiada. Prefiro viver minha vida normal. Prefiro que meu
coração seja dos meus amores ocultos.
Agora,
quero o amor dos livros em Willian Shakespeare com o belo Romeu e a meiga
Julieta; quero Machado de Assis com os seus triângulos amorosos em Dom
Casmurro; quero Fernando Pessoa romantizado em Ofélia; quero Castro Alves para
viajar em seu Navio Negreiro; quero Carlos Drummond de Andrade com o seu E
Agora José? e tantos outros; como também quero Manoel Bandeira para me levar
para sua Pasárgada e nunca mais voltar para minha realidade. Afinal, sou uma mulher toda coração.
OLHA MINHA BEBÊ, GENTE
Quando nasci, mamãe
separou-se do meu pai. Ela trabalhava, eu ficava sozinha. Não me lembro de quem
cuidou de mim antes, só sei que aos quatro anos eu fazia tudo sozinha e muita
coisa de gente grande. Arrumava a casa, cozinhava, lavava e passava; minha babá
tinha a cara quadrada, brilhava e chiava muito quando chovia. Aprendi algumas
coisas com ela, mas muitas inúteis e sem graça. Nunca ouvi falar da minha avó
nem do meu avô. Mamãe trabalhava feito uma condenada pra me dá de comer e
algumas coisas: roupas, calçados, relógio, celular, tablet, notebook, muitas
bijuterias (pulseira, broche, pente, anel, etc.) e escola. Disso ela não abria
mão: educação. Eu tinha de estudar pra ser gente na vida. Fazia das tripas
coração para me botar nas melhores escolas. Nunca me faltou um lápis; de tudo
ela me supria, inclusive carinho e muito amor. Pense numa mãe dedicada à filha.
Assim era a minha mãe. Uma mulher queimada do sol, pequena, mas forte e
trabalhadeira. Costurava, passava, lavava, limpava; era diarista. Saía às cinco
da manhã, voltava às vinte horas. Às vezes, me pegava com as tarefas da escola;
às vezes, a dormir sobre os livros. A minha babá ficava na sala a falar
sozinha; ora sobre sexo, ora sobre esporte; mas gostava mesmo era de violência,
de guerra, de assalto, estupro, pedofilia, traição, corrupção. Ainda dava
prejuízo no fim do mês. Presa aos estudos não tinha tempo para ouvir aquela
fala chata e repetida; todo dia as mesmas desgraças.
Ganhei um computador da
minha mãe; agora, as tarefas da escola eram feitas nele. Uma ferramenta
excelente para meus estudos. Meus trabalhos eram sempre bem avaliados. Aprendi
a mexer na máquina sozinha; a vontade era tão grande, logo estava digitando
textos e mais textos. Aprendi a diferença entre hardware e software; formatar,
instalar, copiar, colar, salvar. Era só ler o manual e esmiuçar o tutorial de
cabo a rabo. Coisa que muito pouca gente gosta de fazer. Prestei vestibular
para Ciências Jurídicas e passei numa boa classificação.
As notícias, os jornais,
os livros, as pesquisas, os filmes e jogos eram todos diretamente no
computador. A televisão há muito perdeu o sentido; foi para o conserto e não
mais voltou. Sequer eu senti a sua falta. Estava cansada do seu monólogo
interminável e chato. Mamãe mal sentava para assistir; estava sempre ocupada
com algo. A mente dela era fantástica. Lembrava-se de tudo e sabia de muitas
coisas que eu lhe perguntava. Achava incrível a minha mãe, eu a admirava
demais. Uma mulher elétrica e eclética. Quando não trabalhava ia para academia,
pra praia, pra piscina, para o shopping. Adquiri o mesmo dinamismo dela mais
voltado para os estudos. Mamãe não mais quis se casar, apareciam uns paqueras;
de quando em vez saía para o cinema ou a praia; nada muito sério só ficava na
amizade. Assim, parecia mais salutar para ambos.
Nas horas de descanso dos
estudos, desopilava com jogos eletrônicos do computador, ou assistia a filmes
via internet. Eram jogos interativos com pessoas do mundo inteiro. O pior que
eu passei a gostar, nem tanto do jogo, mas das interações. Conhecia muita gente
da Alemanha, da França, da Inglaterra, do Japão e até da China. Fazia isso mais
para treinar o idioma desse povo. Mas, geralmente todos terminavam no inglês. O
dito jogo online que eu mais gostava era Audition – um jogo de dança –, onde
conheci um japonês. Convidou-me para dançar e, ao invés disso, confabulávamos.
Eu no meu inglês fajuto e ele também. Parecia que, assim como eu, ele usava a
tradução automática do Google. Dessa conversa, dias depois, nos víamos pelo
webcam. Poucas palavras e muitas expressões de sentimentos, que não precisava
de tradutor. Apaixonei-me pelo “japona”; ele também não me precisou dizer.
Estávamos deslumbrados um pelo outro literalmente.
Durante o dia fazia
Direito na Universidade; à noite, cursava inglês. Estava no décimo período; no
final apareceu um intercâmbio pros Estados Unidos ou pro Japão. Estágio de três
meses eu teria de escolher; não deu outra, fui direto pras terras do oriente.
Tudo muito certinho, eu me formei num dia, no seguinte, viajei.
Brasil – Tóquio. Foi tudo
muito rápido! Entrei no avião era manhã; saí dele era noite. Menos de dez horas
de voo. A diferença de fuso horário me deixou maluca. Foi como se tivesse dado
voltas ao mundo sem sair do lugar. Hospedei-me na casa da jovem que foi pro meu
país. Uma senhora maravilhosa. Desvendo que o mundo é mundo em qualquer lugar
do planeta. Minha mãe não era diferente da senhora Yama. As pessoas se diferem
na pele, na língua; menos no coração e na cabeça; Dona Yama morava no Japão,
mas nascera na Inglaterra. Com isso seu inglês foi muito mais instrutivo pra
mim; enquanto falávamos inglês fluentemente, vivíamos o dia a dia da língua
japonesa. Assim, eu assimilava dois idiomas num só estágio. Fantástico!
Há dois dias, não dançava
online com meu amado; ele deveria está louco; infinitas ligações registradas;
eu também não mais aguentava; mas as circunstâncias me levaram a isso. Ele iria
compreender, acima de tudo, com a minha surpresa. Guardei esse momento por
muitos dias; queria viver intensamente essa realidade que o virtual, a
inteiração, me proporcionara. Estava ansiosa, não via a hora de convidá-lo para
uma dança real, no melhor clube de Tóquio. Queria intensamente abraçá-lo,
beijá-lo, me jogar em seus braços e não mais deixá-lo sair da minha vida.
Fiz tudo meticulosamente
como uma detetive. Escolhi a cidade, o bairro, o condomínio e até o apartamento
próximo ao do meu amado: a residência da Sra. Yama. Vesti-me belamente,
conforme a mamãe me elogiava. Na hora de praxe, lá estava ele, online, a me
esperar. Fiz questão de ligar o webcam; qual não foi a minha surpresa; o garoto
quase desmaiou sobre a cama; extasiado de tanto prazer, pareceu perder a voz.
Eu estava em quase semelhante situação, mas fui mais forte e disse:
- Hoje a nossa dança vai ser
real, amado meu. Estou aqui do seu lado no apartamento 2014; na residência da
Senhora Yama.
O garoto deu um salto
feito louco a despertar dum desmaio; e não mais o vi na telinha do Notebook.
Num segundo, o toque da campainha. Aí, eu perdi os meus sentidos. E nem
português, nem inglês, nem japonês; só a linguagem universal da qual fala o
coração; sentimos o silêncio mais puro e arrebatador entre dois entes que se
amam.
Fomos a um clube real, a
uma dança real, aos sentimentos mais reais. Foram os três meses mais curtos e
mais longos de toda a minha existência. Yamamoto foi o homem virtual mais real
de toda a minha vida, que dura até então.
Hoje, Yama com quinze anos
é o meu maior orgulho. A minha pérola preciosa. O meu sol do oriente sempre a
brilhar na minha vida. Cresceu rápido, mas ainda continua sendo a minha bebê.
Postei as fotos dela no Facebook. Fiz um buque do dia que ela nasceu até hoje;
data do seu aniversário.
- Olha minha bebê, gente!
Não é uma gracinha, a minha bebê?! Não é?! Esta sou eu e ela no playground. Ali
também somos nós duas na piscina. Esta é no shopping na praça de alimentação.
Eu amo a minha filhinha! Eu não sei o que seria sem a minha bebê! Amo, amo,
amo, amo...!!!
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