LITERATURA E MODERNIDADE
BREVÍSSIMO COMENTÁRIO
Inicio esse estudo utilizando-me do que disse Mário de Andrade no texto: O Movimento Modernista: “Ficar no aprendido não é ser natural: é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo.” Eis a lição que talvez tenha servido a Márcio Souza para criar a sua obra não ficando apenas no aprendido, envolvendo-se à necessidade espiritual no uso do direito antiacadêmico, descamuflando-se das técnicas da vida, como aclamara Mário, e se fez pícaro marchando com as multidões de além-moderno do neopicaresco?
Se ser moderno é viver uma vida de contradição como disse Marshall Berman, Márcio Souza com seu “desejo de mudança” conseguiu transpor da vida à obra literária tal contradição. No romance Galvez: Imperador do Acre, Márcio, cria várias possibilidades de se fazer uma leitura ao inserir um estilo literário que faz lembrar Brás Cubas de Machado de Assis, mas com um sabor de além Realismo. Sua obra moderna se insere na modalidade neopicaresca onde se tem como ponto alto a figura do anti-herói, do bobo, do bufão. Uma personagem que toma vida no modernismo pelas mãos de Mário de Andrade em Macunaíma e que Márcio se utiliza muito bem em sua obra.
Encontramos em sua obra de ficção figuras da história da borracha, o Látex, do norte do país, que se misturam com nativos, mitos, lendas, alienígenas e extraterrenos sem tirar a seriedade nem o deleite do “viver literário”. Encontramos também, na sua forma mais explícita que a técnica exige, exemplos de Ata, Conferência, Agenda, Ordem de Serviço, Decreto, Bilhete, Receita de remédio, Diálogos (Diálogos do 3º Mundo II) como são literalmente reproduzidos em peça de teatro ora numa linguagem culta ora coloquial, extinguindo assim, o receio de se iniciar uma frase com pronome oblíquo (Me ofereci para...), graças ao recurso da poesia e como fez Mário e disse em seu texto citado inicialmente.
Há algo do que sugeriu Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico de 1928, em Galvez, bem como também de Mário em Macunaíma, isto graças ao recurso da paródia e da transcendência (moderna?) literária na modalidade neopicaresca. Em Galvez, o “Tupy or not Tupy is the question” de Oswald, está presente nos capítulos fragmentados da sua obra assim como Love and Revolution, Gand Finale ou Petit Apothéose, Calderón de la Barca, Vade-Mécum do Comportamento e em muitos outros, como veremos mais adiante (em, Alguns Capítulos: Galvez, p.7) Márcio constantemente alimenta-se antropofagicamente em criar neologismos (Floresta Latifoliada), misturar textos, frases, epígrafes em francês, inglês, espanhol, latim em sua obra exatamente como um pícaro esfomeado por comida, poder, dinheiro e mulher. Márcio, por sua vez, por conhecimento e cultura, e porque não dizer também, nós esfomeado pela pesquisa.
MC Garcia
EXÓRDIO
Eis um estudo de análise-proposta do romance picaresco Galvez: Imperador do Acre, que através do recurso da paródia procuro fazer uma análise-pícara? Talvez, isto graças à idéia que tive na escolha do tema Anatomia textual, por ser um assunto pertinente e, acredito, bem sugestivo para o que me proponho a fazer, que é explorar a riqueza do erotismo que existe na obra.
Nesta análise, vale ressaltar que quando estiver falando do romance Galvez Imperador do Acre, o denominarei de obra, a qual nos dá uma noção precisa daquilo que intenciono nessa proposta, por tratar de um vocábulo do gênero feminino; o mesmo servirá à palavra estrutura que será denominada de Anatomia Textual. Não posso deixar de dizer, que a análise anatomia textual, seguindo e honrando as linhas de um GALVEZ ou de um BUSCÃO faz também as suas digressões que irão tratar especificamente da fábula, da narrativa dentro da narrativa, de alguns capítulos da própria obra e do romance neopicaresco. Mas, se por acaso, o leitor deparar com algo sobre o narrador, o anti-herói ou outros assuntos inerentes a este universo; podem ficar tranqüilos que não se trata de nenhum coincidência não. “Qualquer semelhança é mero Paradoxo” com o que já foi visto ou lido em se tratando de uma manografia.
OBRA EXPLORADA: GALVEZ IMPERADOR DO ACRE
“É incrível como o povo brasileiro possui uma linguagem de vanguarda”.
Luiz Galvez (pág. 181)
SINAL VERDE
Como todo princípio nunca reservou nada de fácil para ninguém, eu, no papel de alguém, também hesitei como um galucho ante o seu capitão para dar início, ou melhor dizendo, para apresentar esta proposta de trabalho ao professor, o qual nos solicitava uma Monografia de um romance picaresco. À medida que íamos lendo a obra, escolhida “democraticamente”, por cada grupo; íamos mostrando os nossos “alfarrábios” garatujados ao mestre, para que numa data preestabelecida, fosse apresentada oralmente e, num próximo encontro, fazer-se a entrega do trabalho escrito. E, como num banco de réu estávamos todos, sem exceção, a prestar depoimento de nosso feito. Pois, sim, chegou o meu dia. E para a minha surpresa, vejam vocês mesmos, qual foi a posição do juiz:
“O esboço apresentado sugere, fortemente, a possibilidade de realização de um trabalho criativo e pertinente.
Os tópicos eleitos para a elaboração da pesquisa indicam que essa leitura detectou um eixo válido ao raciocínio do Galvez pela ótica da neopicaresca.
Aguardo o resultado da reflexão.”
Isto, me fez lembrar o Capitão, não daquele, mas desse do carpe dien, do filme Sociedade dos Poetas Mortos.
ALGUNS CAPÍTULOS: GALVEZ
“Ficar no aprendido não é ser natural: é ser acadêmico...”
(Mário de Andrade)
Floresta Latifoliada
Esta é uma história de aventuras onde o herói, no fim, morre na cama da velhice. E quanto ao estilo o leitor há de dizer que finalmente o Amazonas chegou em 1922. Não importa, não se faz mais histórias de aventuras como antigamente. Em 1922 do gregoriano calendário o Amazonas ainda sublimava o latifoliado parnasianismo que deu dores de cabeça a uma palmeira de Euclides da Cunha. Agora estamos fartos de aventuras exóticas e mesmo de adjetivos clássicos e é possível dizer que este foi o último aventureiro exótico da planície. Um aventureiro que assistiu às notas de mil réis acederem os charutos e confirmou de cabeça o que a lenda requentou. Depois dele: o turismo multinacional. (pág. 13)
Love and Revolution
Cira não escamoteava absolutamente nada para que eu lutasse pelo seu amor. Enfrentar o imperialismo americano tendo como propelente ideológico o amor de uma mulher. E eu dizia, por favor, querida, isto não é romance do Abade Prévost! Quantas libras esterlinas temos nisso?
Ata
Comitê de defesa do Acre.
Reunidos no Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de Mil Oitocentos e Noventa e Oito, às vinte e duas horas e dez minutos no local denominado Usina Velha, na estrada Val-de-Cães, o nosso presidente Dr. João Lúcio de Azevedo deu como aberta a sessão, apresentando o convidado especial, o Dr. Luiz Galvez Rodrigues de Aria. Pedindo a palavra falou a companheira Sra. Cira Chermont: “A causa que defendemos não pede barreira de nacionalidade. Pede apenas a solidariedade. Lutamos contra a ameaça que pesa sobre o povo do Acre, uma região esquecida e miserável e que se tornou alvo da cobiça internacional.” Pediu uma aparte o companheiro Alberto Leite: “Lutamos contra a criação de uma Corporação Internacional que poderá dominar o Acre. Já existem muitas regiões do globo infelicitadas por esse tipo de empresa. Zamzibar é um exemplo.” A companheira Cira Chermont prosseguiu: “A nossa melhor borracha vem do Acre. Até a metade deste século ninguém discutia a nacionalidade do Acre. Só os índios lá viviam e o Acre era evitado até pelos exploradores mais corajosos. Diziam que por lá havia febre. Os cearenses não tiveram medo da febre e entraram na região. Empurraram a fronteira com a própria miséria...” (pág. 44)
Máxima
Certamente a miséria também é imperialista.
Ata - Continua
“... E quem se beneficiou foi o Brasil. Hoje a borracha...” (pág. 45)
Calderón de la Barca
Me ofereci para organizar uma zarzuela com os sobreviventes. Afinal, eu me sentia de certo modo culpado daquela situação. Entrava no mundo do teatro pela porta do remorso, a porta espanhola. Sir Henry aprovou a idéia e prometeu ajudar. Tinha relações em Manaus, era amigo do proprietário do hotel Cassina, o luxuoso hotel dos aventureiros. Blangis batizou a nova companhia com o nome de “Les Commediens Tropicales”.
Primeira Conferência
“Recusamos sistematicamente a ciência tradicional que teme a imaginação. Queremos uma ciência livre dos entraves do racionalismo judaico-cristão. O misterioso monumento art-nouveau que é o Teatro Amazonas, no Brasil, é um enorme conjunto arquitetônico preciosamente trabalhado, com mais de cem pés de comprimento e pesando milhares de libras. Foi levantado a novecentas milhas do oceano Atlântico e acima da linha do equador. No alto do monumento há uma intrigante cúpula dourada que coroa o monumento perdido na jungle tropical. Para deslocar apenas esta cúpula, teria sido necessário o esforço de quarenta mil homens. Para nós, este colossal trabalho megalítico tem sua chave nas lendas orais dos nativos, que falam sobre o poderoso “mestre” Jurupari, dominador das mulheres e que teria vindo do espaço, mais precisamente, da constelação da Plêiade. Considerando a impossibilidade técnica da civilização megalítica ter erigido tão complicado monumento no meio da selva, sobre um platô que lembra um porto para veículos do espaço, negamos aos arquitetos do látex, que também não possuem sofisticação tecnológica, o feito dessa realização. O fato de afirmarem que o Teatro Amazonas data de época recente é uma grosseira simplificação de ignorantes. Fizemos testes com resíduos no Instituto de Metafísica Nuclear de Adis-Abeba, que nos revelaram um período de pelo menos um milhão de anos, o que coloca o surgimento do monumento na era Glacial. Em visita ao monumento, há seis meses passados, notamos a existência de diversos corpos no interior do palco. Os corpos estavam mumificados. Mas não se trata de um monumento funerário, mas também não descartamos a hipótese de se tratar de um túmulo cultural. Sem temor, podemos afirmar que há poderes biocósmicos ainda por descobrir. O Teatro Amazonas é para nós o mais perfeito indício da presença de seres extraterrestres na Terra, ao lado das pirâmides do Egito e da megalópolis de Tiahuanaco. O que nos surpreende é a cuidadosa dissimulação de sua real finalidade, e o art-nouveau uma lição de civilização legada por Jurupari, o viajante das Plêiades, que um dia surgiu numa cúpula flamejante e emprenhou as mulheres nativas. (pág. 92, 93 e 94)
Agenda
Organizar um Comitê Revolucionário para preparar as etapas do movimento.
Organizar um serviço de informação para coletar dados sobre a presença boliviana no Acre.
Organizar uma equipe de recrutamento de voluntários.
Organizar uma equipe de intendência e munições.
Alugar uma área para treinamento militar dos elementos recrutados. (pág. 127 e 128)
Oficial General
Galvez - Poderíamos conquistar o mundo se não morressem de cirrose hepática.
Vaez - São o que temos de melhor.
Galvez - Algum problema?
Vaez - Uma baixa. Zequinha Farias, o nosso pianista, morreu ontem na Santa Casa.
Galvez - Causa Mortis?
Vaez - Sífilis!
Galvez - Mande colocar a bandeira a meio-pau! (pág. 130 e 131)
Ordem de Serviço I
Do: Comandante Galvez
Para: Intendente Chefe.
Prezado Senhor, venho por meio desta ordenar um remanejamento em nossas compras. Queria diminuir a munição em quatro caixotes de balas e adicionar duas caixas de vinho e vinte dúzia de cerveja.
Saudações Revolucionárias.
Viva o Acre Independente.
Galvez, Comandante-em-Chefe. (pág. 131)
Théârtre de Beaumarchais I
Enquanto a comitiva se encontrava no saguão, decidi investigar pessoalmente. Ordenei que minhas agentes Marthe, Marie e Concetta procurassem informações na fonte. Justine L’Amour decidiu trabalhar por conta própria e também acompanhou minhas agentes que imediatamente invadiram o saguão do hotel, para o contentamento dos funcionários. Entrei no quarto onde estava hospedado Luiz Trucco e roubei uma coleção de mapas. No quarto de Kennedy não encontrei absolutamente nada, estava intocado e mesmo a cama continuava sem lençóis e colcha.
Decreto
O Imperador do Acre, em suas prerrogativas de Soberano e representante da vontade popular, decreta:
§ 1.º - A vigência do Código Penal Brasileiro em todas as suas cláusulas, no território nacional.
§ 2.º - A vigência da Constituição Brasileira em todas as suas cláusulas e na redação atual, no território nacional.
§ 3.º - Este decreto terá validade até a convocação da Assembléia Constituinte do Acre, em futuro próximo.
Cumpra-se e publique-se.
Luiz Galvez Rodrigues de Aria, Imperador do Acre. (pág. 165)
Bilhete
Sr. Galvez.
Olhe aqui, o senhor anda muito entusiasmado com essa estória de decretos. Pois fique sabendo que não gostei nada de terem me tomado o depósito de mercadorias da praça 15 de Novembro.
Do amigo,
Pedro Paixão. (pág. 167)
Ilustres Desconhecidos IV
O primeiro trabalho do Ministro da Saúde foi curar o Imperador de uma terrível ressaca. Ele me deu um preparado de guaraná que ainda hoje considero um santo remédio. Revelo aos leitores o segredo do Dr. Nobre:
Guaraná em pó ........................................ 5 a 20 gramas.
Piramido ................................................ 10 a 40 gramas.
Para uma cápsula.
Importante: o pó do guaraná deve ser obtido ralado na língua do pirarucu. (pág. 175)
Diálogos do 3º Mundo II
Galvez - Quais as providências tomadas?
Chefe de Polícia - ...?!
Galvez - As providências, cavalheiro?
Chefe de Polícia - Bem, bem... (bocejo) A vítima não suportou o golpe, faleceu. Dr. Nobre acusou hemorragia no atestado de óbito. Ela vai pra cadeia. O problema são os filhos.
Galvez - Filhos?
Chefe de Polícia - São onze filhos. O mais velho tem 12 anos.
Galvez - Solte a mulher. Olhe aqui, minha tia, a senhora não pode andar decepando escrotos por aí, ouviu? Vou mandar lhe soltar e trate de cuidar de seus filhos. Audiência encerrada. (pág. 180)
Grand Finale ou Petit Apothéose
Os leitores que me perdoem, mas furtei o passado da alacridade das memórias e da seriedade das autobiografias. Devolvo minhas aventuras como elas sempre foram: um pastiche da literatura em série, tão subsidiária e tão preenchedora do mundo. Reparti minhas sensações nestes capítulos e entrego meus passos ao rodapé imaginário de um jornal. (pág. 195)
A Dialética da Natureza
O nosso herói existiu realmente e pelo norte do Brasil exercitou sua fidalguia. Comandou uma das revoluções acreanas, e quem duvidar que procure um livro sério que confirme nossa afirmação. Os lances picarescos de Luiz Galvez formam um todo com o vaudeville político... (pág. 196)
ANÁLISE ANATÔMICA DO TEXTO
"O sexo obrigava o dinheiro a ser criativo."
Luiz Galvez (pág. 117)
PRIMEIRO EQUÍVOCO
Sem a mínima intenção de querer fazer comparação e, ao mesmo tempo fazendo com Machado de Assis; a primeira impressão que tive ao folhear o livro Galvez: Imperador do Acre, me lembrou mais que de súbito e imaginariamente, do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas ante semelhante fragmentação dos conteúdos de ambos. Agora, percebo que em Machado se tem a segmentação do conteúdo em capítulos, e em Galvez, tem-se apenas quatro capítulos, os quais são fragmentados. E aqui basta, para a minha conclusão precipitadamente equivocada. Pois, onde lê-se capítulos em GALVEZ, lê-se partes que é o que mais se amolda à sua anatomia.
SEGUNDO EQUÍVOCO
Acredito, que agora já poderei me aventurar e cair de boca, olhos, ouvidos, nariz, mãos nessa fêmea que como uma submissa me espera fechada, mas a depender dos artifícios (pesquisa, leitura, paciência, perseverança e amor) deste amante, ela abrir-se-á como a flor que carece de ser explorada e se deixa ser levada pelas carícias das mãos misteriosa da natureza. Para assim, ele (o amante) poder mergulhar e se perder também nas suas entrelinhas e conhecer-lhe com profundeza a sua intimidade; e, por fim, confirmar o adágio popular de: sou uma obra (literalmente) aberta. Mas há de se fazer uma ressalva: que o meu espírito de pretenso aventureiro se revista do mesmo espírito aguçado de um Lazarilho de Tormes, de um Guzmán de Alfarache, de um Buscão mesclado da cautela de um Galvez quando diante da sua atraente Cira:
“... e confessava que aquilo me metia medo...” “Agora eu estava certo de que ela não era o melhor caminho para um aventureiro se integrar na sociedade do látex. Se era isso o que eu desejava, deveria ter me livrado dela.”
Digo, portanto, ainda não estou tão certo quanto Galvez, mas que essa obra me instiga a me enveredar por esse tipo de exploração, isto é verdade. Estou receoso. Mas seja o que Deus quiser.
APENAS UMA PERSONAGEM
Então, mãos literalmente à obra. E rumemos à exploração erótica da obra picaresca Galvez: Imperador do Acre. Quanto ao Imperador, este não me assusta em ter que explorar a sua obra, por se tratar de uma personagem apenas, mas que é cúmplice e que sabe muito bem explorar as mulheres dos outros. Por isso estou de consciência tranqüila. Preocupa-me os olhos clínicos da Crítica e a posição de Márcio Souza, pai da obra. Receio em ser flagrado e sofrer deportação, não como personagem, mas por ser um galucho nessa linha de pensamento.
MIKHAIL BAKHTIN
Em M. Bakhtin vemos que o caminho de um aventureiro geralmente remete às figuras do trapaceiro, do bufão, do bobo os quais têm o objetivo de desmascarar os outros e tornar público a sua vida privada com todos os segredos mais íntimos(1). Com isso, desejo não segredar nada do que a obra, tem de mais íntimo , sobretudo na esfera sexual e vital para tornar público o que também existe nas entranhas de suas entrelinhas.
Antes de discorrer propriamente sobre a Anatomia Textual, diga-se de passagem, um assunto que muito nos instiga, falarei primeiramente a respeito da Fábula do Galvez: Imperador do Acre, nossa obra, para ver como a personagem Galvez, este aventureiro de primeira linha, se tornou pseudo-protagonista de seu autor, escritor brasileiro Márcio Sousa.
Tudo começou quando o autor-personagem em terceira pessoa, este que irá se manifestar dentro da obra ora alertando o leitor das divagações e mentiras do Galvez, ora concordando com as loucuras da personagem; Márcio Sousa? (eu-personagem) turista em Paris, encontrou na prateleira de um sebo do Boulevard Saint Michel um manuscrito redigido em português que constava das aventuras de um aventureiro nas terras da seringueira, que o adquire pela bagatela de trezentos e cinqüenta francos, tendo que enforcar entre outras coisas uma viagem de ônibus a Nice e um jantar no Les Balcans; mas com a intenção de parodiar o mestre de Mecejana, José de Alencar, como o fez no livro GUERRA DOS MASCATES, garantindo portanto, reaver os seus trezentos e cinqüenta francos com o sucesso da sua obra, como podemos atestar nessa análise. A fábula se desenvolve sobre um triângulo de terras que pertencia aos índios amora, arara, canamari e ipuriná que estavam situado entre a Bolívia, Peru e Brasil. Tal pedaço de terras teve como pioneiro um cearense sem trapos que fez uma casinha numa ribanceira de rio, que ao escrever uma carta em má caligrafia endereçada para o comerciante Visconde de Santo Elias, poderoso comerciante de Belém, ao decifrar a origem da carta como sendo Acre acabava de fazer bons negócios com o cearense e sem saber, batizava aquele território. Já a personagem, Galvez, é um homem de meia idade que aos trinta e nove anos procura se aventurar pelas terras do norte do Brasil. Morando no Rio de Janeiro e, trabalhando como escriturário numa firma, é convencido por Maldonado, um biscainho de Bilbao, que havia ficado milionário no Amazonas. Não muito demora Galvez chega em Belém com o seu projeto mais realista que é o de ficar rico. Na terra do látex entrega-se às mais extravagantes aventuras e por seus caminhos, os mais tortuosos, galga os degraus da vida e chega ao seu objetivo pelos lapsos e percalços do destino. Torna-se amigo de Luiz Trucco, representante da Bolívia, da forma mais esdrúxula que se possa imaginar. Aventurava-se com uma caboca quando no ápice dos deleites que só uma priprioca pode proporcionar é flagrado pelo português, marido da caboca. Subitamente como um gatuno, salta por uma janela do quarto no qual se encontrava e cai sobre a sua felicidade, ou melhor, sobre quatro homens que ali se encontravam. Era Luiz Trucco que estava sendo abordado por três homens encapuzados que tentavam roubar-lhe o dinheiro. O acaso faz surpreender os assaltantes que logo fogem e Trucco agradece o feliz ensejo. Galvez ainda a segurar as calças não compreende bem quando o inusitado amigo o agradece e o convida para tomar uma bebida. Dias após Galvez é convidado a jantar na casa de Trucco e daí então começa a freqüentar a mais alta burguesia paraense, com direito a festas na casa do prefeito e até na
(1) BAKHTIN, Mikhail. Questão de literatura e de estética: A teoria do romance, SP: HUCITEC, 1993. pp 275-281.
casa do governador. Arruma trabalho no jornal A Província do Pará por intermédio de João Lúcio. Passa a ser integrante do Comitê de Defesa do Acre onde Galvez vê com bons olhos os comentários que são feitos do Acre, mormente no que se refere à riqueza por lá existente e que os americanos têm muito interesse, mas que está sobre o domínio dos bolivianos. A vida de Galvez começa a se complicar quando a Província do Pará publica uma matéria de um documento oficial do governo sobre a qual tinha por trás a participação direta de Galvez e de João Lúcio, secretário do jornal; tal matéria deixa Trucco sentindo-se traído e o governador Paes de Carvalho furiosos. A mando do governador a polícia fecha o jornal e João Lúcio é preso e brutalmente espancado. Galvez só toma pé da situação quando no Teatro da Paz assistia a temperada lírica. Há um princípio de grande rebuliço. É a polícia à procura de Galvez que ao perceber foge pelo meio da multidão agitada. Foge para o porto e clandestinamente pega carona num vapor que segue o Rio Amazonas com destino a Manaus. Quando já bem acomodado é descoberto por uma freira, esta que não vamos tecer nenhum comentário pelo menos agora, deixemos para quando estiver na Anatomia Textual que esta personagem é de suma importância para a nossa análise. Galvez é visto como uma coisa demoníaca dentro daquele barco e é expulso pelo bispo de Belém e abandonado às margens do Rio Amazonas. E como num sonho Galvez é salvo pelo vapor de bandeira inglesa do cientista Sir Henry Lust que se destinava para Manaus. Chegando em Manaus aumentam as suas chances de ir para o Acre e a mesma freira que o flagrou no barco é quem o faz despertar seu interesse, quando lhe conta da fortuna que o governo do Amazonas coloca à disposição dos interessados a se habilitar em liderar um movimento em nome da libertação do Acre que está nas mãos dos bolivianos, apoiados pelos norte-americanos, isto é, para que seja declarado independente aquele território, com o objetivo de formar um governo que tenha o seu reconhecimento internacional. A freira o convida para uma reunião e sem hesitar Galvez aceita o convite. Quando na reunião Galvez vê o prêmio de cinqüenta mil libras e não resiste. Aceita o desafio e se faz líder de um grupo de estudantes eternos, vagabundos crônicos, poetas inéditos, ovelhas negras de boas famílias, advogados chicanistas e parte para o Acre. Lá chegando, hospeda-se na casa do proprietário, coronel Pedro Paixão que só adere a revolução depois que é homenageado com uma grande festa articulada pelos assessores do Marechal-de-campo Luiz Galvez Rodrigues de Aria. No dia 14 de julho de 1899, dá-se a queda de Puerto Alonso, às sete horas da manhã quando os bolivianos ainda dormindo são pegos de surpresas e presos sem muita resistência. Em seguida Galvez se faz Imperador. Prende o representante boliviano Luiz Trucco e o hipocondríaco americano Michael Kennedy. Então Imperador do Acre Galvez perde as rédeas de seu governo e dar lugar às extravagâncias: orgias e mais orgias, prostituição, escândalos e depravação invadem o recém-território e começa a incomodar conservadores como Dona Vitória, mulher de Pedro Paixão, que em seus encontros religiosos deixa bem clara a sua insatisfação e revolta, e chega a tramar a queda do Imperador Galvez, com o seu slogan: abaixo o can-can. Quando também surge a figura do tenente Burlamaqui que andava insatisfeito até com o governo brasileiro, imaginem com o Imperador do Acre. E quando tudo tramado, no dia 31 de dezembro de 1899, às nove horas o tenente Burlamaqui entra no palácio, que estava em festa, à procura de Galvez para depor-lhe pessoalmente, e o encontra dormindo entre várias garrafas de seu famoso xerez, protegido pela escuridão do caramanchão. É preso sem oferecer nenhuma resistência. E poderia no estado em que se encontrava?
Podemos encontrar no romance Galvez um precioso universo de intertextualidade que nos faz retornar a leituras feitas em nosso dia a dia de maneira formal ou informalmente, como também nos convida a fazer outras leituras com obras que, às vezes, só ouvimos falar. Assim como, especificamente, obras e autores como José de Alencar (Guerra dos Mascates), Cervantes, Robson Crosué, Flaubert,
Julles Verne, Gulliver, Molière, Anatole France que aparecem de forma fragmentada dentro da obra. São
referências que nos instigam a procurar nos aprofundarmos, no futuro, assim como também amplia o nosso repertório, eliminando, mesmo que por alguns miríficos instantes, a nossa fome de leituras e de conhecimento, descobrindo portanto que, Flaubert, precursor realista, é detalhista e minucioso demais em seu romance Madame Bovary. Honrando portanto, com a estética da época: o Realismo.
Para iniciarmos este fragmento, acreditamos que tudo tem a ver com o tema SINAL VERDE(?) o qual serve de abertura à primeira parte desta nossa análise. Mas vamos ao que realmente nos interessa. A carona que pegamos, é no que tange à intertextualidade de que trata o tema anterior que fala de leituras de outrora e nos fez lembrar dum livro dos críticos literários Platão e Fiorin PARA ENTENDER O TEXTO Leitura e redação, editado em São Paulo no ano de 1991 pela editora Ática; onde destacaremos dois assuntos que nos situa com precisão, ao que trata com muita sutileza, a nossa musa inspiradora que é a obra Galvez. Façamos destes dois assuntos, dois breves fragmentos da nossa inacabável intenção (anatomia textual):
1 -“AS RELAÇÕES ENTRE TEXTOS” (pág. 19) “Com muita freqüência um texto retoma passagens de outro. Quando um texto de caráter científico cita outros textos, isso é feito de maneira explícita” ( abrimos parênteses literalmente ou “sem querer interromper e interrompendo” para destacarmos algumas passagens dentro da obra, Galvez, que contrariando o que estabelece Platão e Fiorin, apresenta dados científicos de forma implícita. Por exemplo: “O rio Amazonas como rio de planície, possui uma correnteza vagarosa e cria sinuosas trajetórias. É a maior bacia hidrográfica do mundo e a única que não legou nenhuma civilização importante para a história da humanidade.” “Há 35.000 utilidades para o uso da borracha, e, no entanto, segundo Henry Ford, - atenção, para um detalhe importantíssimo nesse fragmento que se insere numa obra de ficção e nem mesmo assim o personagem não se furta em fazer citação de uma pessoa importante e que conhece, com certeza, as qualidades da borracha. Como aprendemos em Língua portuguesa II, para endossar e reforçar nosso discurso fazemos o uso de citação ou argumento de autoridade que seja experta no assunto em pauta - ela ainda permanece na infância da indústria.” Diz Galvez. Bom, poderíamos dissecar os trechos referentes aos dados científicos existentes em nossa obra, mas não é o caso, fiquemos em sua anatomia apenas). Platão e Fiorin nos explica o porquê da atitude do escritor, que para nós, é Márcio Souza e não personagem como falamos ainda pouco. Dizem, os críticos acima: “Num texto literário, a citação de outros textos é implícita, ou seja, um poeta ou romancista não indica o autor e a obra donde retira as passagens citadas, pois pressupõe que o leitor compartilhe com ele um mesmo conjunto de informações a respeito das obras que compõem um determinado universo cultural. Os dados a respeito dos textos literários, mitológicos, históricos são necessários, muitas vezes, para compreensão global de um texto.”
2 - “O TEXTO E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA” (pág. 27). Antes de tratarmos deste assunto, façamos um retorno ao início da nossa obra e destaquemos o que diz na sua apresentação: Este é um livro de ficção onde figuras da história se entrelaçam numa síntese dos delírios da monocultura. Bom, aqui basta-nos para que convidemos, mais uma vez e última, Platão e Fiorin para exprimirem descritivamente sobre esse assunto: “... todo texto é um pronunciamento sobre uma dada realidade. Ao fazer esse pronunciamento, o produtor do texto trabalha com as idéias de seu tempo e da sociedade em que vive. Com efeito, as concepções, as idéias, as crenças, os valores não são tirados do nada, mas surgem das condições de existência.” “Todo texto assimila as idéias da sociedade da época em que foi produzido.” “Quando se afirma que os textos se relacionam com a história, não se quer dizer que eles narram fatos históricos de um país (propriamente), mas que revelam os ideais, as concepções, os anseios e os temores de um povo numa determinada época.” Retomemos parte da apresentação da nossa obra: Os eventos do passado estão arranjados numa nova atribuição de motivos e o autor procurou mostrar uma determinada fração do viver regional.
NARRATIVA DENTRO DA NARRATIVA
“Não sendo a criatividade um fruto do academicismo, nas universidades ela demora a prosperar”
(paródia da epígrafe da parte 3 - Galvez – por MC Garcia)
PSEUDO-NARRADOR
Nesta análise, Galvez: Imperador do Acre, não se pode dizer o mesmo que disse Mário González em análise de O Guzmán quando lembrava a nós leitores da existência do Larazilho. Digo, isto no que se refere à vida de um pícaro como um clássico. Porque em Galvez se percebe um certo distanciamento do qual faz parte do processo de evolução que sofre o romance picaresco onde se pode ver esse processo no próprio estudo dos pícaros apresentado por Mário González. Percebe-se portanto, que a abertura que esta modalidade deixa para se criar e se tomar outras direções na linha do picaresco é muito propícia e acima de tudo louvável para quem assim desejar segui-la; ao ponto de se ter hoje uma nova denominação dessa modalidade de romance: o romance neopicaresco, o qual tem a sua eclosão no século XX, especificamente na América Latina, manifestando-se praticamente no Brasil nos dias atuais, como nos confirma mais uma vez M. González. Podemos assim destacar obras como Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida, obra que segue as linhas do pícaro clássico (ou como caracteriza Antônio Cândido em Dialética da Malandragem, de Romance Malandro), mas que tem a sua identidade própria, por exemplo, no tipo de narrador apresentado que é em terceira pessoa e não em primeira como é de costume; Macunaíma, de Mário de Andrade, este é um romance que segue características bem próprias que chega a extrapolar as linhas do pícaro espanhol, se assim podemos dizer, e passa a ser um romance autenticamente brasileiro, graças a modalidade neopicaresca. Macunaíma transgride e subverte a "forma" até do que é picaresco, por isso se insere na modalidade neopicaresca.
No que se refere ao narrador em nossa obra, há de se fazer alguns esclarecimentos específicos. Ainda, quando na fábula tratei de um narrador em terceira pessoa equivocadamente, pois em se tratando também de uma exploração minuciosa, descobri nas entranhas das entrelinhas da obra, no seu íntimo, na sua essência que se camuflava um pseudo-narrador em terceira pessoa, quando na verdade existem dois tipos de narradores: um é aquele que se faz fiel às características de um narrador clássico, isto é, como pícaro que narra a sua própria história, em primeira pessoa, para se tornar narrador-protagonista, nos levando, como leitores à mirífica deleitura, fazendo que divaguemos em seus sonhos de saudosista incurável e muitas das vezes mendaz. Aí, é quando entra o outro tipo de narrador, o narrador implícito, o narrador intruso que quer porque quer tomar parte na narrativa pegando carona chamando a atenção do narrador principal; este segundo tipo de narrador é aquele que só tem relevância na narrativa quando se propõe no início a narrar sobre o romance Galvez o qual por mera obra do destino, como um autêntico pícaro encontra num sebo em Paris, em rascunho, as aventuras de um velho de Cádiz, na Espanha. Portanto, ficamos diante de dois personagens, dois narradores que não se sabe definir bem quem realmente está com a verdade, se o narrador-protagonista, ou se o narrador-caronista que possui um certo teor de onisciência dentro da obra.
O PÍCARO COME BEM MAS TEM FOME...
“Deu de Deo”
Miguel de Cervantes.
“ANTROPOFAGIA”
O que dissertarei agora, revelará sobre um aspecto “humanamente” Modernista, do qual Oswald de Andrade propôs em seu manifesto Antropofágico em maio de 1928: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” (1) Mas para que isto aconteça, recorro ao recurso da Literatura Comparada para fazer uso de duas obras (Galvez, esta que já é de nosso conhecimento e Juramento, conto de Humberto de Campos) as quais nos revelarão a que nível atinge a fome humana, isto é, sem medir o grau de socialização ou civilização, como muitos (homens) acreditam que isto valha alguma coisa para ser social. Sigamos adiante para verificar.
Falarei de Humberto de Campos, deste que ainda não nos é do nosso conhecimento, mas que agora passa a ser; Humberto de Campos é maranhense, escritor, contista, cronista e, é só o que sabemos dele no momento, mas com certeza, ele vai estar na bibliografia deste estudo para aqueles que quiserem se deleitar de seus miríficos contos assim como O Monstro e Juramento. Este último, é o que nos vai servir de referência para o estudo comparado com a obra Galvez: Imperador do Acre, essa amiga que já se tornou tão íntima da gente e que a cada instante desvendo prazeres inusitados em adentrar mais e mais nas suas complexas entranhas de feminina, impossíveis de serem exploradas por completo, justamente por dois motivos: primeiro pelo tempo que me é escasso; e segundo, pela volubilidade de estar sempre a flertar outras obras, pois me sinto altruísta e, é assim, que todo estudo teria que ser. Eis o parâmetro entre os dois textos: Galvez x Juramento. Observemos a marca de paradoxo que existe nas atitudes das duas personagens abaixo:
Ramon Gonzalez: “...E começava a entardecer, quando fomos assaltados pelos índios xurupinás, que são os mais terríveis de toda a região.”
Galvez de Aria: “Senti um frio quando descobri que eram selvagens. Eu tinha me escondido numa árvore bem alta e vi umas dez ubás lotadas de índios exageradamente felizes com padres e freiras.”
Ramon Gonzalez: “Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao acampamento dos indígenas, sete léguas adiante, mato a dentro...”
Galvez de Aria: “As vítimas foram amarradas em troncos, por uma corda...” “...os selvagens ofereceram tacapes para que pudessem se defender. Não aceitaram, e foi com indignação que fizeram saltar os santos miolos em golpes de mestre.”
Ramon Gonzalez: “ - Antropófagos, os xurupinás devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da condução. No dia seguinte, pela manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e Consuelo.” “- Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio... Como são feios os miolos, aparecendo, ensangüentados, entre a pasta
(1)ANDRADE, oswald de. O pensamento vivo de. Martin Claret, edições ilustradas. pp. 10-11
dos cabelos!... Impassível, como num sonho, eu via tudo. E só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sôbre as quais as môscas zumbiam, com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos
quais estava, ainda, um anel que lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quasi esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo que tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que
aparecia, repugnante, entre vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também, a devorar.”
Galvez de Aria: “Os corpos foram imediatamente despidos e desmembrados. Sem nenhum tempero visível, foram colocados para assar.” “Vi quando os selvagens amarraram uma freira numa árvore e praticaram tiro-ao-alvo com flechas. Era Joana.” “Os ingás não me haviam enchido o estômago e aquele odor adocicado de assado era tentador. Não quero chocar ninguém e não sei se participaria do banquete, se convidado, mas que a fome era forte, isso não duvidem.”
Já perceberam o que se caracteriza de paradoxo? Pois bem, eis o que prometi. Agora em pauta. Perceberam o comportamento final das duas personagens, como se assemelham àquilo que chamamos de civilização e socialização que os homens sempre priorizaram ante o comportamento silvícola de um indígena? Ambas as personagens, mesmo com identidades de civilizados, não se furtam da possibilidade de se transformarem em antropófagos, apesar de termos em Galvez uma atitude reflexiva, não descarta o prazer de saborear o prato indígena por causa da fome que corrói o seu estômago, mas há a impossibilidade do convite; já no conto juramento, porém, de Humberto de Campos, a personagem, Ramon Gonzalez, é convidada a partilhar do banquete silvestre e faz-se como todos nós, um autêntico antropófago, com identidade e tudo mais..., como assim sugere Oswald de Andrade.
Agora é verdade, e eu já não estava mais agüentando também. Aqui vou começar a aventura da qual me propus no início deste estudo. Bom, antes que não me esqueça, vou lembrar do que realmente irei tratar especificamente. Primeiro falarei das aventuras eróticas que existem na obra, em que vai aparecer aquela personagem do barco que flagrou a nossa Personagem. Chamarei este primeiro assunto de Análise Anatômica Textual; em segundo, falarei das fomes do nosso pícaro, quando em negrito dei destaque à sentença: COMIA BEM.
Eis a ANÁLISE ANATÔMICA TEXTUAL tão esperada da qual irei discorrer precisamente no que existe de mais erótico na obra, que na verdade não é nada mais nada menos do que os “atos” sexuais do nosso aventureiro Galvez, que se totalizam em número de onze, isto é, são os que pude identificar num primeiro momento; sendo que, sete deles são “reais” e quatro não passam de divagações de um eterno saudosista exilado que, para escapar da solidão, nos dá um universo fictício de sua própria vida de ficção; onde já ingresso na então idade do lobo, como costumam dizer, a faixa dos 40, também já apresenta o seu declínio sexual em virtude do consumo de bebidas. Para ser mais preciso, relaciono alguns desses momentos tão relevantes para o homem e para Galvez no que alude ao sexo, às suas relações sexuais com a caboca paraense, mulher do embarcadiço português; com Cira, mulher de um negociante de madeira; Joana, a freira, esta que se fez noiva de Cristo e que não era mais virgem e que terminou transando com Galvez. Eis a importância que a personagem tem nessa análise, quando recusei-me de tecer qualquer comentário sobre a mesma na fábula. Na verdade há uma crítica à igreja católica, onde mostra a insatisfação de Joana, totalmente despreparada, sem nenhum dom para seguir a vida religiosa, isto é, como irmã de Cristo; Dona Irene, mulher do prefeito de Belém, crítica social no âmbito da política; menina de aproximadamente doze anos, exploração sexual de menores; a vendedora de fósforo de dezessete anos; e Justine da companhia de dança, a qual Galvez pode contar nos seus momentos mais difíceis, principalmente, quando se fingiu de morto e viajava de Manaus para o Acre dentro de um caixão e Michael Kennedy flagra Justine em cima do caixão trepando com o morto. Estes “fatos” eróticos ocorreram nas capitais da seringueira. Agora, os “fatos” da Duquesa Theresse, mulher do marido sifilítico; Bianca, a Princesa Toscana, mulher do marquês que é “corneado” também por um Bispo; Agnes Louise, mulher do marido que sofria convulsões; e por fim, Maria Isabel que foi desonrada por Galvez que tirou e fez derramar sangue daquela família por duas vezes: Maria por ser desvirginada e o irmão por ser morto pela espada de Galvez. Esses, ensejos, são passagens que constam nas digressões, ou melhor dizendo, nas divagações sofridas constantemente por Galvez.
Entrarei agora nas fomes propriamente dita que o nosso herói sofria para falar da sentença em destaque: COMIA BEM. E comia bem mesmo a personagem. Digo, comia e nunca que saciava a sua fome, como nenhum outro homem terá jamais que deixar de sentir as fomes do nosso herói. Porque todos
nós sofremos de alguma dessas benditas fomes que é a fome de poder, de sexo, de bebida, de viver e, acrescentaria mais umas, que especificamente são a fome do Saber, do Conhecimento e da Pesquisa na ânsia de enriquecer esse estudo.
Cônscio de que esse é um trabalho árduo centrado na pesquisa, que exige um esforço fora do normal e que, acima de tudo, o tempo é escasso mas exige que se desvende algo inusitado a cada passo que se siga, motivado pelo anseio da análise e do espírito da criação, que são o processo desse desejo que se flui, nesses miríficos ensejos dessa Análise Anatômica textual que se desenvolve a mil, num arrebatamento que me aguça os sentidos e me tranqüiliza a alma, a me fazer sentir, às vezes, um autêntico personagem de obra de ficção, a divagar como assim o fez Galvez, vejo-me metamorfoseado num verdadeiro nefelibata do Romantismo. E, desta feita, o narrador intruso, entrão após nos alertar, por diversas vezes, das divagações da personagem, termina se convencendo de que o sonho, o saudosismo, as pseudo-verdades fazem parte da vida, tanto da obra, como da personagem. Eis a conclusão daquele narrador:
“Interrompo para advertir que o nosso herói vem abusando sistematicamente da imaginação, desde que chegou de Manaus. E como sabe nos envolver! Para início de conversa, no Acre ele tentou organizar um República liberal. E depois, bem, depois, pensando melhor, para que desviar o leitor da fantasia?” (está no segundo fragmento da nossa obra intitulado Perdão, Leitores - pág. 176).
Olhos atentos para as sentenças em negrito e concluamos o comportamento do narrador intrometido e vencido.
Chego até aqui e só Deus sabe como. Mas, mesmo assim, valeu! sinto-me com uma estranha sensação de vazio. Um eterno vazio de fome da mesma maneira em que iniciei esse estudo, fome de Conhecimento, pelo tempo, pela inexperiência, pela ingenuidade e pela ousadia, que me foi sentida a cada linha, a cada parágrafo, dessa análise na qual procurei concluir, mas não consegui; eis que uma fome me obriga a procurar insaciavelmente leituras e mais leituras para que atenda as minhas necessidades de acadêmicos eternos? Isto é, se não me transformar num pícaro de “Futuro infinito” para que me aventure em leituras, mesmo que seja num visionário Dom Quixote, na intenção de matar nunca, mas de ficar sempre com essa atiçada fome quase que crônica do Saber da crítica literária, na ilusão de que só através da pesquisa interminável é que irei atenuar essa minha fome? Talvez ainda nem assim.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Manoel Antônio de. memórias de um sargento de milícias. Ed. crítica de Cecília de Lara. RJ: Livros Técnicos e Científicos, 1978 (Biblioteca Universal de Literatura Brasileira,2)
ANDRADE, Mário de. aspecto da literatura brasileira. 6a. ed. São Paulo: Martins, 1978.
ANDRADE, Mário de. macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica de Telê Porto Ancona Lopez. Paris: Association Archives de la Litérature latino- américane; Brasília: CNPq, 1988 (arquivo, 6)
ASSIS, Machado de. memórias póstumas de Brás Cubas, Ed. América do Sul LDA, Chile, 1988 ( Biblioteca de Ouro da Literatura Universal )
BAKHTIN, Mikhail. Funções do trapaceiro, do bufão e do bobo no romance. Em seu questão de literatura e estética: A teoria do romance. 3ed. Trad. Aurora Fornori Bernardini et alii. SP: HUCITEC, 1993. pp 275-281.
CAMPOS, Humberto de. o monstro e outros contos. Ed. W. M. JACKSON INC. SP/ RJ/RS: 1947. (vol. 25) pp 163-172.
CARVALHO NETO, Paulo de. meu tio Atahualpa. Trad. Remy Gorga Filho. SP: Círculo do Livro, 1976.
CERVANTES, Miguel de Saavedra. dom quixote de la mancha. Trad. Viscondes de Castilho e Azeredo. SP: Abril Cultural, 1981.
FIORIN, José Luiz. & SAVIOLI, Francisco Platão. para entender o texto: Leitura e redação. 3ed. SP: Ática, 1991.
GONZÁLEZ, Mário M. o romance picaresco. SP: Ática, 1988, ( Princípios, 151 )
MARANHÃO, Haroldo. o tetraneto del rei (o torto suas idas e vindas ) RJ: Francisco Alves, 1982.
OS PENSADORES. Sócrates. Trad. Jaime Bruna, Líbero Rangel e Gilda Maria Reale. SP: Nova Cultural, 1996.
QUEVEDO, Francisco de. o gatuno: história da vida do gatuno chama do Dom Pablos, exemplo de vagabundos e espelho de velhacos. Trad. Eliane Zagury. SP: Global, 1985 (Armazém do Tempo)
REVISTA DO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, dialética da malandragem. USP, nº8, 1970, pp. 65 a 89.
SOUZA, Márcio. galvez: imperador do acre. 10ed. RJ: Marco Zero, 1983.
SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino: romance armorial-popular brasileiro. RJ: J. Olympio, 1971.
VIDA DE LAZARILHO DE TORMES, A. Trad. Stella Leonardos; Intr. Adriano da Gama Kury. RJ: ALHAMBRA, 1984.
Natal, 02 de Março de 1999.
Maurício C. Garcia - autor
MC GARCIA