ESTATÍSTICA DIÁRIA

ADMIRADORES DAS IDEIAS

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

VI LIVRO - O MENINO DE MARÉ - ROMANCE - 2012 - NATAL/RN



O Menino de Maré
O Menino de Maré
Este vive a canoar
Nas águas do Rio Grande
Que desembocam no mar
Esse Rio Potengi
É nosso índio Poti
Donde emergiu potiguar.

O Menino de Maré
Toma banho na Camboa
Lança rede e tarrafa
Singra no mar a canoa
Pesca cangulo e xaréu
E abarrota o batel
De tudo que é coisa boa!

O Menino de Maré
Faz seus versos com amor
Astro-rei que nasce aqui,
É quão belo ao se pôr!
Canta à luz do luar
Adentra o infindo mar
Como um velho trovador.

O Menino de Maré
Versejar a nota Dó
No Canto do Mangue, Roca
E também no Igapó
Canta na banda de lá
Toca na banda de cá
Sempre numa nota só!

M. C. Garcia – 11/01/2009




um  -O Menino de Maré
O trisavô de o menino de maré, seu escancha avô – como dizia a minha avó –, fora um pescador muito respeitado na tranqüila comunidade do Galo. Seu bisavô, que parecia muito com Ossiab, viveu a vida inteira a pegar caranguejo. Já o seu avô era um assíduo pegador de goiamum. E seu pai, como não podia deixar de ser - para confirmar a tradição - fora um homem muito experiente na pegada de aratu.
          Seu Ossiav, como era chamado seu pai, fora o melhor e mais respeitado pegador de aratu da redondeza. Conhecedor das  técnicas e artimanhas desse ofício, muitos por ali o admiravam e o consideravam o maior. Era um homem  feliz, que dava a vida por aqueles bichinhos - vermelho, preto e branco - rápidos e espertos. Era do que ele sobrevivia. Com uma lata de querosene, de vinte litros, presa a um arame que servia de alça para sustentação; uma vara de meio metro e, na ponta dela, um cordão de mais ou menos um metro, tendo na sua ponta uma isca, de preferência carne-seca; um vidrinho com querosene, esse líquido é um santo remédio para se evitar  mutuca e maruim, quando passado no corpo.  O maior inferno de quem vive da maré é ter que enfrentar o maruim e a mutuca, pois dependendo da maré, se esta  estiver de vazante, nem os mais experientes dos homens, como Sr. Ossiav, conseguia resistir, mas como um guerreiro que nunca foge da batalha,  seguia  impávido a sua luta interminável numa rotina matinal, porque se assim não o fosse morrer-se-ia de fome. É o inexorável preço de quem vive de um ofício traçado pela própria Escritura: “Viverás do pão do teu suor”. Árduo, mesmo, era o caminho que se tinha de trilhar até chegar ao lugar desejado; caminho este de uma verdadeira tortura que poucos homens arriscariam em fazer para chegar até lá. Mas eis uma justificativa que faz do rude e do sábio um mesmo ser, isto é, ao chegar a um mesmo destino, pelo adágio popular de: “após a bonança vem a tempestade”. Porém, Sr. Ossiav  tinha sua recompensa. O lugar distante e de difícil acesso era uma região privilegiada, onde existiam os mais bonitos aratus. Era um manguezal fechado, exclusivo, que a natureza  reservara das mãos assassinas dos dendroclastas; um lugar para poucos. E só os mais fortes é que conseguiam chegar ali; teriam todos eles a responsabilidade de cuidar e zelar por aquele santuário ecológico. Manguinhos era o seu nome, dado pelos próprios pescadores.
            Atravessava-se uma extensa área de lama que dava além das canelas. Entre raízes altas e mangues frondosos o pescador tinha que, sobre elas, de lata e isca em punhos, feito malabarista de circo em trapézio, transpor o caminho tortuoso e perigoso; ao chegar, escolhe-se a raiz mais próspera de aratu. Senta-se. E com um ramo de mangue na mão esquerda e na outra a vara com a isca; se pega então aí, os maiores e os mais bonitos dos aratus. Além do galho, que serve para atrair a atenção dos aratus, ao bater nas raízes, à medida que as folhas caem na lama, existe também o assobio que atrai os aratus de cascos ébanos, pernas escarlates e patas brancas que brilham no reflexo do sol que entra pelas brechas do mangue frondoso; e uma luz fantástica ilumina, também, o território do pescador. Dentro de pouco tempo a lata, que se encontrava rodeada de crustáceo,  fica  abarrotada  de aratus.  Então, é   hora de sair correndo, para entregar ao dono do restaurante a encomenda e voltar, rapidamente, a mais uma pegada de aratu. Seu Ossiav fazia isso três, quatro vezes ao dia. E, aquele lugar de difícil acesso, não mais lhe assustava.  Nada o impedia de fazer rotineiramente o seu trajeto, pois, fazia com amor e muita determinação.
           Seu Ossiav morrera com dignidade aos vinte e quatro anos de idade. Certa vez, quando retornava do seu glorioso trabalho, escorregara e caíra sobre uma raiz carregada de ostra, esta lhe acertara em cheio a veia da perna; sem ninguém para lhe socorrer, chegou em casa desfalecido pelo sangue que perdera.  Fora uma semana de aperreio aquela. A perna latejava demais e não parava de marejar. O corte se abria e fechava quando a maré secava e enchia respectivamente. Ensinaram-lhe o pó da ostra ralada para botar no corte da ferida - um santo remédio, que fechou a ferida num piscar de olhos - porém, não lhe trouxe o sangue de volta, pois ficara anêmico demais. Naquela mesma semana, Ossiab ficara órfão e sua mãe viúva.
          Contudo, o pequeno Ossiab se tornara um verdadeiro pescador e um respeitável pegador de caranguejo, de goiamum, de aratu, e de siri. Abraçava, portanto, a todos os ofícios de seus ancestrais e adquirira, por si só, ou por força da tradição, o ofício de pegar siri. Comungava, finalmente, com a mesma sina dos seus ancestrais, de forma inata e intrínseca, ironicamente, no rigor da sua geração. E Ossiab criara um estilo próprio de como subtrair as coisas do mar e da maré, isto é, com muito zelo e com sabedoria.
              Passaram-se geração e mais gerações... De monotonia, rotina, solidão... Era a sua vida, porque no íntimo, no fundo vivia a sofreguidão do espírito; e o seu âmago, num silêncio profundo a martelar coisas e mais coisas; eram os dissabores latentes daquela profissão que o fazia parecer viver sem razão... Sem missão... A trabalhar horas e mais horas a fio sem nunca questionar a vida de pescador eterno. Certa vez, a sua alma se revestiu de um arrebatamento maravilhoso e o fez mergulhar  num mar de paciência e calmaria; pois, a sua consciência parecia entrar em harmonia com seu coração e, assim, se fez reluzir o espírito da reflexão... E veio, então,  o sonho juntamente com o desejo de mudança, e  questionou profundamente o seu pretérito.
                Um povarejo pobre era o Galo, que recebeu esse nome pelos próprios moradores, só porque existia por ali num sítio, uma grande casa antiga de alpendres, com um  galo de bronze sobre o telhado, que de longe, de muito longe mesmo, se via aquele bicho todo imponente, à sua frente, bem na pontinha onde se formava a cumeeira do  velho casarão. Lugarzinho que não passava  de uma comunidade de pescadores a alguns metros do Rio Potengi, à margem da linha do trem. O número de moradores se chegasse a quinhentos era muito. Um povo simples que vivia, a sua maioria,  das  coisas do mar e da maré. Como fora o exemplo do pequeno Ossiab que passo a contar-lhe agora.
             O menino de maré morava com a mãe a qual dependia muito dele. Por isso, levantava cedinho para trabalhar. Perdeu o pai quando ainda tinha oito anos de idade. Era a única riqueza que a sua mãe possuía verdadeiramente, o seu pequerrucho, ainda tão novinho, sem pai. Pobre coitado!
                  Quando o ano começava e  os  três  primeiros  meses vinham,  as  marés pareciam ficar muito mais cheias que  o restante dos meses, como acontece até hoje. Nessas marés, Ossiab e outros meninos achavam era bom. O banho era mais gostoso. As maria-farinhas ovadas e os caranguejos ficavam presos no capim-navalha.  Muita gente enchia baldes e latas desses crustáceos, facilmente. Os mais velhos diziam que era por causa da lua cheia - a força dela; mas todos os meses tinha lua cheia, outrossim, as marés não, elas não eram tão cheias quanto as de janeiro, fevereiro e março, nem tinha caranguejo nem maria-farinha para o povo pegar.
               Taciturno, o pequeno Ossiab assistia a tudo aquilo, indignado. Nunca viu com bons olhos aquele massacre. Todos os anos era a mesma coisa. E ninguém fazia nada por aqueles pobres e indefesos caranguejos.   Ficava enfurecido, enfezado só em ver a falta de escrúpulos dos homens que insaciavelmente pegavam, matavam, pisoteavam os bichinhos. Xingavam-se uns aos outros, eram os homens em toda a sua essência; e brigavam por ambição, mais uma das suas fortes características; com vasilhas abarrotadas, ali estavam os crustáceos mutilados, esmagados,  mortos... Quão incomensurável era a revolta de o menino de maré, sendo ele, um perito em pegar as coisas do mar; sabia que naqueles meses não se podia pegar nem se comer caranguejo. Era o período para procriação dos crustáceos;  e toda a sua família sabia disso, de geração a geração, seguia isso como uma tradição. Podia se comer qualquer outra espécie do mar, exceto caranguejo, mas, por que aqueles homens estavam ali, a abarrotar-se de caranguejo, indiscriminadamente? Por quê? Refletia a alma sofrida de Ossiab.  Talvez, fosse por que tudo se tornava mais fácil; era uma reca de homens insensíveis,  não entendiam nada do ofício de quem vivia da pesca; eram ignorantes, gostavam afinal de tudo nas mãos; viviam da moleza e desconheciam o verdadeiro mistério do viver daqueles pequeninos animais.
          Ossiab toma uma decisão com relação a tudo que vinha acontecendo e, imediatamente,  decidi fazer uma viagem, uma longa viagem. A partir daquele dia se sentira verdadeiramente, O Menino de Maré, e começou a ver o mundo de outra maneira e com outros olhos: o da admiração, o da contemplação, o da sapiência. E passara a ser mais cuidadoso. Partiria à casa do Mestre Essiib, o Sábio da Camboa, um homem sapiente por excelência, dotado de um conhecimento transcendental e, far-lhe-ia duas perguntas que a muito lhe incomodavam o espírito. Perguntaria ao Mestre, primeiramente, sobre a vida dos caranguejos. “Por que eles eram presas fáceis?” Em seguida, questionaria a respeito à sua geração de pescador eterno.
              Certa vez, quando passeava pelo salgado, sozinho, a admirar as pequeninas espécies daquele lugar, pôde ver chama-marés, tesoureiros, tamarus, unha-de-velho e outros tipos de crustáceos tão pequeninos, que só agora a sua sensibilidade o despertara a ver o quanto aquele lugar era sagrado. E então passou a sentir na alma o que aquelas  criaturinhas sofriam no casco ou, com a própria vida, quando pisoteados ou esmagados pelos humanos.

dois -O Menino Artesão
 Ossiab era  filho único. Sua  mãe, coitada, não tinha a saúde muito boa. Apesar de nova, entre sete irmãs, parecia ser a mais velha. Vivia sob a responsabilidade de uma delas que tinha marido funcionário Público que trabalhava na Estrada de Ferro. Mandava-lhe mensalmente uma feirinha modéstia, que não era muito, mas dava para ela e seu pequerrucho viverem muito bem. Aos dez anos, Ossiab, já sentia na pele o peso da responsabilidade. Todas as manhãs, bem cedo, ele ia buscar água. Tinha um galão feito de pau de bambu e correntes. As latas, para carregar água, eram de querosene - vinte litros. Era um menino pequeno, nanico, mas parrudo. Tinha pernas entroncadas, mas fortes. Tirava o galão d’água, da cacimba para casa, num fôlego só. Suportava todo o peso do galão no ombro esquerdo aos dez anos de idade, assim como Cristo aos trinta e três, o da cruz. Duas viagens que fazia por dia, ele enchia a jarra, o panelão e o pote. Esta era a sua tarefa de casa, depois, a tarefa mais árdua. Dez, doze viagens para matar a sede do pessoal da beira da linha, no Galo. Era como garantia a sua mixaria para ajudar a sua mãe.  Terminada a tarefa de botar água era a hora de ir para o rio, no alagadiço.  Era ali, onde ele misturava o seu ofício com o prazer de pegar goiamum.
       Ossiab, sozinho, construía a sua própria ferramenta de trabalho. Fazia ratoeiras para pegar goiamum, com muita habilidade e técnica - e quem disse que ele, mesmo sendo criança, não tinha a sua técnica para construir as suas próprias coisas? - eram armadilhas eficientes. Apesar de muito pobre, isso não era problema para ele criar os seus brinquedos ou seus instrumentos de trabalho.  Era no monturo da  casa de Seu Oivatum, o marido da sua tia, onde ele ia e arranjava as latas de óleo para as ratoeiras. As latas tinham um valor que poucos adultos conheciam. Ossiab colhia-as de lá e as abria  ralando na parede de cimento da bueira, que servia como ferramenta; uma perfeita ferramenta. Parecia uma tarefa fácil, mas não era não. Exigia muita disposição e habilidade, porém, isso era o que não faltava nele, tinha até de sobra. Para fazer as ratoeiras era preciso ter em mãos liga de borracha de câmara de ar de bicicleta, arame fino e grosso, tábua, prego, lata, por sinal, muitas latas. As ligas, que ele arranjava dos restos de câmara-de-ar velha, serviam para pressionar a tampa da ratoeira; após presas por dois furinhos na bordo laterial da lata com arame fino; o arame grosso, ou, tira de madeira  era para o cabo que ficava pregado à tampa. Após isso, com um prego, faz-se um furo na extremidade oposta à boca da lata, na parte lateral em que fica o cabo, próximo ao fundo; nesse furo é onde entra o gatilho que prende o cabo, fixo à tampa, pressionado pelas ligas de borracha. Está pronta a armadilha. Só alguns detalhes finais. Pressiona-se a borracha mais uma vez para o fundo da lata, para a outra extremidade intacta; se pega do cabo e, com certa força, pressiona para prendê-lo ao gatilho. Este é o  teste. Aprovado!  Agora, é só esperar o dia de armar.
          Para armar, segue o mesmo procedimento do teste, ou seja, força-se o cabo para o corpo da ratoeira, a lateral da lata, e o prende pelo gatilho. Esta ferramenta tem o formato de um três, feita de arame fino, mas resistente para suportar a pressão da borracha, presa por dois furos laterais, à tampa. O gatilho, que passa por um furo na lateral, próximo ao fundo da lata, prende o cabo quando pressionado para baixo, isto é, na parte externa; e, na parte interna da ratoeira, o gatilho fica com a isca. Bom, quanto à isca, esta é a mais importante de tudo. Pois serve para atrair os goiamuns. Podendo ser limão, manga, caju ou folha de mangueira, ou de bananeira. Todas são iscas muito boas, desde que tenha cheiro forte, para atrair as presas. Por sinal, os goiamuns têm um cheiro bem apurado, por isso, sempre caem facilmente nas armadilhas dos meninos.
            Prontas as armadilhas, Ossiab  tinha umas vinte ou mais ratoeiras. Agora, era só partir para luta, mas antes, teria que procurar os buracos dos bichos, para depois armar uma a uma. E tinha que ter uma boa memória. Era um verdadeiro desafio  para se lembrar dos lugares em que cada uma ficava. Bom que fosse apenas Ossiab naquele mundo, mas não, eram muitos outros garotos que disputavam o mesmo espaço com ele. Aí, era onde teria que se provar quem era mesmo bom, quando se tinha que enfrentar a concorrência desleal dos que viviam a roubar as ratoeiras uns dos outros. Para estes larápios, tomava-se o maior cuidado. Havia de se fazer previamente um estudo. Um lugar bem escondido. O buraco certo, de goiamum grande. Deixava-se as ratoeiras, tão escondidinhas, tão camufladas que os próprios donos, às vezes, se confundiam com um monte de lama ou de capim feito propositadamente por eles mesmos. Porém, todo cuidado era pouco. Não se podia dar chance mesmo a ninguém. Por sorte, nunca lhe roubaram nenhuma ratoeira sua, bem que tentaram por várias vezes, mas Ossiab sempre os flagrou. Era um experto na pegada de goiamum e estava sempre alerta e vigilante. Este era o preço de não levarem suas ratoeiras. Poucos tinham a paciência que Ossaib tinha. Conseguia pegar só patolão e azulão, que dava para entrar o dedo indicador na pata grande sem prender. Mas não era fácil não. Para tudo, se exigia um esforço peitado de grande. Para isso, Ossiab tinha que se levantar, às quatro da manhã, ainda escuro. No alagadiço, procurava os melhores buracos. A espessura da bosta era o tamanho do bicho.  Nem sempre buraco grande era sinal de goiamum grande.  Às vezes,  buraco médio tinha  cocô avantajado, aí,  ali morava um grande e bonito goiamum. Fazia isso todos os dias, antes mesmo de botar água. Os outros garotos não  entendiam como ele fazia aquilo. Quando desciam para o rio e se encontravam com Ossiab pegado no galão,  nem desconfiavam da sua esperteza. Só às dez é que Ossiab descia para o rio.  Encontrava algumas ratoeiras de cabo para cima. Estavam batidas. Era uma felicidades daquelas bem grande, que os olhos chegavam a brilhar. E, aí, ficava até o fim da tarde. Quando voltava para casa eram quatro cinco cordas de goiamuns. Teria sido um dia muito bom aquele. Um excelente dia! E a  mixaria estava garantida para auxiliar na feira que a sua mãe ganhava da irmã mais velha. Os goiamuns eram colocados num tanque. Ficavam para serem servados por um ou dois meses, com uma ração especial: bagaço de coco, manga, caju, casca de banana.  Bonitos e gordos eram vendidos quase de graça mas garantia-se, ao menos, a farinha daquele dia.
        Aos quinze anos de idade o menino da maré adquirira as técnicas e as artimanhas de pescador. Fazia tudo tão bem, ou melhor, quanto os seus ancestrais. Tudo vinha dos genes. Era mesmo hereditário, não tinha como negar.  Exercia na íntegra os ofícios de seus ancestrais sem eles nunca os ter ensinado. Aqueles bichinhos comoviam-lhe tanto a alma.  Sempre se via a cometer um crime, um grande crime contra eles. No íntimo, achava-se injusto por pegar aqueles animaizinhos indefesos, ingênuos e tão dóceis. Achava-os diferentes dos aratus, dos siris, dos goiamuns, até mesmo dos chama-marés e tesoureiros. Estes que, quando ameaçados, mutilam-se as próprias patas e fogem. Já os caranguejos, estes - coitados! -, se escondem em lugar inadequado e são presas fáceis. Qualquer pessoa pode pegar um caranguejo, até a mais ingênua delas e sem experiência alguma, fá-lo vítima facilmente.
       Certa vez, Ossiab fez uma boa pegada de caranguejo e não era o dia da corrida deles não. Enchera dois sacos de estopa pela boca. Arrancara-os  a braço, de buracos profundos, em lama dura e seca, num sol de rachar as costas.  Saíra, às quatro da manhã, e só ao meio dia voltava com um saco demasiadamente pesado de cheio. Depois, voltava para pegar o outro saco, pois era impossível ter que levar os dois de uma só vez. Ainda no caminho, levando o primeiro saco, sentiu um remorso, um grande arrependimento. Algo estranho invadiu-lhe o seu coração, rapidamente, retirou o saco das costas. E, ali mesmo, no salgado, saltou todos os coitadinhos, que o chão - o Salgado - ficou alastrado de caranguejo. Sentira-se extremamente arrependido. Sentira-se como um seqüestrador, que retira dos lares crianças, mulheres e homens indefesos para vendê-los. Este ofício - o de pegar caranguejo - que tanto lhe afligia a alma fora exercido pelo seu bisavô há muito e muito tempo atrás.
       E foi a partir desse dia que  Ossiab passou a sentir admiração e respeito por esses animais. Passou, também, a defendê-los dos ataques de pessoas ignorantes do ofício de pegar caranguejo, e, agora, os orientava como pegá-los, na época certa.  Desse dia em diante Ossiab não mais pegou caranguejo. Aí, então, foi que decidiu partir.


três -O Sofrimento de Mãe

O albor daquele dia fora esplendoroso. Ossiab irradiava de felicidade na mesma sintonia do dia. O baticum do seu coração cadenciava com a natureza no canto feliz do bem-te-vi e do sibite que, lá no alto da pitombeira, estavam em festa. Seria a  despedida do amigo que partiria para bem longe? Talvez. Era janeiro, justamente o mês em que se dava a primeira corrida dos caranguejos.  Mês de maré cheia. Grande. Alta. Ossiab estava decidido.  Daria  um fim em tudo aquilo que o seu coração pedia e a sua consciência indicava. Só o Mestre Essiib, lhe daria as respostas das quais necessitava e tudo estaria resolvido.
Na noite anterior, confessara a mãe que iria viajar e ela não fora de acordo com a ideia maluca do filho.  Sabia que aquele lugar era muito perigoso. De águas revoltas, mormente, naquela época do ano. Dona Irecy ficara assustada com aquela decisão repentina de Ossiab. Achara que ele não estivesse bem da cabeça, não estava a girar bem, pois estava a falar heresia, a dizer coisa sem pé nem cabeça. Era maluquice um menino dessa idade ter que se aventurar e fazer uma viagem daquela. Sua mãe tinha medo que ele fosse e nunca mais voltasse. Pois, já  ouvira falar de muitas histórias. Aliás, viu muitos exemplos de homens experientes que foram e nunca retornaram os mesmos. Muitos dos que tentaram,  não  voltaram, e, os poucos que voltavam, máculas irreversíveis ficaram: corpos e mentes insanas; pernas e braços mutiladas; arrependidos da doideira que  fizeram, inclusive, um avô seu. Mas Dona Irecy nunca  contara ao seu filho. Sempre teve medo que despertasse  no menino a mesma maluquice. E agora, se via ante a mesma desgraça, sem poder fazer nada. Ossiab era teimoso igualmente o bisavô. Botava uma coisa no quengo não tinha quem a tirasse, nem a sua mãe nem ninguém. Bem que ela tentou. Contava-se: “tubarões enormes atacavam as frágeis embarcações. Barcos à vela ou canoas eram sucumbidas pela violência da fera”. E o menino de maré pretendia navegar numa dessas canoas, pois não existia outra forma. Dizia-se, ainda: “um tubarão atacava com uma fúria de monstro, que se desconfiava que aquilo fosse mesmo peixe ou uma espécie de monstro marinho”. No íntimo a mãe entendia as intenções do jovem cachopo. Tudo tinha a ver com a mesma história do seu avô - era o destino, a moira. O castigo era não ter contado para o filho antes. Agora teria que pagar pelo seu silêncio.
A contragosto arrumou as coisas do filho e botou tudo numa cesta de cipó.  Com água nos olhos, botou a manta de retalho que há mais de ano costurava; arranjou chapéu de palha; alpercatas antigas que o marido deixara;  num bisaco colocou pó de café, açúcar, tapioca, beiju, rapadura, coco, farinha e carne-seca. Entregou uma cabaça d’água na mão do filho e foi para o quarto.  Na manhã seguinte, o menino foi se despedir da mãe e deparou com ela ajoelhada a rezar o seu infindo terço de todas as noites. As ave-marias e os pai-nossos enchiam o quarto escuro de paz e silêncio; o coração do pequeno Ossiab palpitava de prazer e medo pela ansiedade. A velha sua mãe, a partir daquele momento, passara as noites e os restos dos dias ali, de joelhos. A orar. A rezar. E a resmungar  pelo filho desnaturado.  Era a sua riqueza que Deus lhe deixara que via sair pela porta da cozinha, mundo a fora. Ossiab beijara-lhe e  abraçara-lhe como se lhe pedisse, em silêncio, a benção eterna. A proteção sagrada de sua mãe, uma pobre e santa mulher. E partiu.

quatro -A Viagem de Ossiab
A viagem duraria, em média, quatro meses. Era o que o menino de maré ouvira dizer pelos mais velhos. Isto é, se a maré e o tempo o ajudassem.  A maré estava como ele gostava. Cheia, alta, grande como a lua  que tinha tudo a ver com aquele seu gostar - era um eterno admirador de Lucina, um romântico, um poeta. Isso, já era um bom sinal para o sucesso da sua viagem. Dias antes arrumara a canoa e colocara bucha de coco nas frechas para não vazar; pintara de piche o fundo e as laterais e de azul claro, o restante; já os bancos e bordos foram pintados de branco. Tudo estava em perfeita harmonia: o dia e a sua alegria em extasia. Encheu a canoa de apetrechos para a viagem; a canoa, presa à corrente e cadeado no tronco de mangue, desancorava para um mundo desconhecido. Agora, homem e barco rumam para o grande destino: a casa do mestre Essiib, ambos a deslizarem vala a baixo e, em poucos minutos, encontram-se com o Rio Grande, é o Potengi, que flui calmo, lento e eterno em busca do mar, em que o homem o particularizou de praia de Redinha. Dois remos e  vela auxiliam o pequeno navegador. Tudo que ele mesmo improvisara para a viagem; a vela era a sua grande auxiliadora, quando cansava de remar; ainda no primeiro dia, percebeu  que não iria ser fácil ter que enfrentar aquele mar. Imenso e indomável mar, que o fazia pequeno, tão pequeno do tamanho de nada. Começava a enfrentar as fortes ondas das praias e a sua incomensurável violência.
O crepúsculo da tarde, no horizonte, denunciava o quanto tinha navegado.  Ou seja, o bastante para se ter a esperança do fim. Entrava, agora, na praia de Genipabu, uma extraordinária e beleza de praia, margeada por dunas e coqueiros que os nossos olhos não acreditam e até chegam a duvidar enfeitiçados de tanto encanto. A noite caía, mas ainda não  era hora de parar. A canoa continuou a levitar na calmaria das águas noturnas. O mar abrandara. Sob o esplendor de Lucina o espírito de o Menino de Maré se enchia de paz, da mais infinita paz que nunca sentira antes; quão gratificante era tudo aquilo que deixou-se envolver pela brisa e dormiu. Dormiu confiante como criança embalada numa rede pelas mãos materna. Barco e berço, canoa e rede; homem e criança, homem e homem. Não, não se podia discernir um do outro: se Ossiab homem, se ele criança; o resultado é que ele dormira demais e acordara assustado. O sol forte da manhã, já se encontrava alto, e encandeava os seus olhos. Acordou desesperado, pois estava à deriva, se sentiu perdido no meio do mar?  Aí, lembrou-se que tivera um belíssimo sonho, alguém o guiava e a sua canoa rumava quase sozinha, porém ele não conseguia ver o rosto do cicerone marítimo, por mais que tentasse identificar, aquele guia misterioso, não o conseguia. E tudo se dava como se ele estivesse acordado, mas mesmo assim terminou dormindo. Entre toda aquela confusão normal de quem acorda assustado, percebeu que estava próximo da terra; aí, viu casas de pescadores, um imenso coqueiral e alegrara-se até a alma, mas o prazer que teve se deu por via contrária, ao invés de contemplar o lugar e descansar, foi-se embora e continuou a singrar mar a dentro.  E, assim, canoou e canoou  o máximo que pôde. E navegou e canoou por muitos e muitos dias, até completar um mês de viagem.
O mar parecia lhe fortalecer mais e mais os ânimos, a vida; a cada vez que canoava mais queria canoar pelo mar, não se cansava nunca se cansava. Parecia que aquele contato direto com o mar fazia-lhe sentir-se seguro e rejuvenescido. Era uma energia transcendental, que emanava da imensidão azul, e os mistérios ocultos das noites eram todos desvendados, pela força do seu coração que só desejava chegar ao destino. Dias e noites se passavam calmo e lento como a vida às vezes é, e não é. Ossiab se envolvera profundamente mesmo, do fundo da sua alma com aquela viagem, que sequer se lembrara de comer, não tocara na comida, porque não sentira fome a nenhum momento e não era fastio não. Alimentava-se da esperança de chegar, da contemplação, da admiração e por venerar as coisas belas da natureza marítima. Tinha o firmamento inteiro a todo seu dispor a todo instante e momento que quisesse ou não; a lua, as estrelas a todo instante a iluminar o seu caminho, o seu destino.  Estrelas no céu, estrelas no mar. Luzes em tudo que era lugar.  Luzes realçadas até nas águas do mar. Tudo que emanava da terra, do céu, do mar era como se fosse a  essência de seus alimentos. O espírito a transbordar de felicidade, a se arrebatar de amor, a rejubilar-se mais e mais. Sem fastio, jejuava e meditava como um eremita na solidão de seu barco. Sem saber e sabendo que, tudo isso, o fortalecia e lhe deixava seguro e confiante para continuar, sem hesitação, a missão que ele próprio escolhera?

cinco -A Mendiga da Praia
Numa calmaria de noite, a canoa virara num belo barco, transcorria nas águas cristalinas e frias do Atlântico, sozinho. De súbito, Ossiab sentiu estar sendo levado por uma força misteriosa. Algo que emanava do mar. Uma brisa, um vento que o fazia poderoso e otimista do seu destino... Na manhã seguinte, descobrira que viajara três meses. Não notara que o tempo passara.  Tudo se dera como num sonho. Aí, veio a fome e resolveu parar no primeiro lugar que visse pela frente. Iria comer. Agora era fome de verdade. A barriga acusava com todos os roncos. Apareceu-lhe uma praia bem à sua frente, mas era miragem. Dessas que se sente no deserto. Mas ele não tinha sede. Sentia era uma fome braba a corroer o estômago. Fechou os olhos e deixou-se levar pela força misteriosa da noite anterior e, quando abriu, estava onde sonhara. Era uma praia bonita, onde desembocava um rio de águas límpidas. Viam-se belos cardumes:  tainhas, carapebas, camurupins e peixes-reis. Há noventa dias que não dera uma palavra com ninguém. Queria estar com algum pescador daquele lugar, naquele litoral sem fim. Amarra a canoa numa estaca de  cerca que margeia o rio. Um lugar calmo parecia reinar a paz das estórias de Trancoso que a sua mãe contava. Barra do Rio era o seu nome. Descalço, chapéu de palha, bisaco, a tiracolo. Sente-se outro ser ao pisar em terra firme. Uma certa leveza no corpo. Um caminhar de passarinho é como se sente. Sozinho, sem uma viva alma naquela hora da manhã. Minutos depois, avista uma pessoa. À medida que segue, descobre que é uma mulher.  Uma velha mendiga a puxar uma cadela e a trazer um saco nas costas.  Velha e cadela bem ao seu nariz, sente-se profundamente infeliz. “Oh Deus, mais uma miragem?!” Não! Não era miragem não. Eram cadela e velha em deprimente desnutrição, em osso e alma.  Sentido dó pela pobre velhinha; Ossiab  entrega-lhe a cesta com os seus pertences, inclusive, a sua comida, antes mesmos que a velha clamasse por o amor de Deus, sua esmola. Satisfeita, comeu feito rainha com sua Princesa, a cadela, ambas, ali sentada na areia fria, o que havia restado após três meses de viagem.
       Não soltara uma palavra sequer, nem mulher nem menino ambos ficaram como a cadela, que não fosse “pelo amor de Deus” do silêncio no olhar pidão da pobre velha, na satisfação da doação de Ossiab e no abanar de cauda da cachorra pelo alimento recebido. Fora só isso que todos expressaram. A fome não deixara expressão em palavra, só de sofrimento e de morte em espectro de mulher e animal. Ossiab assistia estarrecido a tudo aquilo, mas ficara contente por matar a fome da pobre mulher. Sentia-se envergonhado consigo mesmo, quando horas atrás morria de fome. Matava a sua fome ao alimentar a vida de quem estava a morrer. A bem da verdade, não mais sentia fome.  Tinha um enorme desejo  de ficar ali, a conversar com aquela senhora.  Percebeu que a velhice da mulher não era de velha, mas de fome. Muitíssima fome mesmo. Havia uma certa jovialidade familiar na velhice daquela mulher de cara, de rosto, de semblante em mutação constante identificado, paulatinamente, em cada olhar perscrutador, dele, de que havia algo de especial naquela senhora. À tona fora a sua investigação. Não conseguiu nada de necas.  A comida transformara a mulher. De desfigurada à encantadora no brilho de sua voz, quando Ossiab puxou uma conversa, ainda assim, receoso. Sentados na areia, a conversar horas, e nada aclarou a mente sua. Procurou afastar aquela ideia, ficou em silêncio, de olhos fechados, matutando algo. Fora tirado do devaneio pela senhora.
       - No que está a pensar o jovem rapaz? Você mora por aqui?
       - Não! Não! - Respondeu assustado - em nada, em nada, minha senhora. Estava cochilando apenas. É que não tenho dormido muito bem de alguns dias para cá.
       - Parece-me que o jovem está de viagem! Aquela canoa é sua?
       - Sim! É minha senhora. Estou de viagem sim?
       - Para aonde vai, meu filho? Pelo que vejo você está a viajar há muitos dias, e pela  bagagem que leva, ainda vai ter que muito canoar por essas águas infindas desse mar caudaloso. Não é isso?!
- Justamente, eu estou indo para a Camboa, à casa do Sábio...
- O mestre Essiib? Interpelou a mulher.
- Sim, minha senhora. É esse mesmo, o grande sábio da Camboa.
- Oh, meu filho, foi Deus quem mandou você para aqui. Há meses que ando por estas terras, na intenção de chegar nesse lugar, mas sei que não vou conseguir. Estou muito cansada, as minhas pernas não mais aguentam e as minhas costas doem muito. Será que você, poderia fazer um favor, para esta pobre mulher, em levar um recadinho, digo, uma pergunta... uma perguntinha apenas, para o mestre Essiib. Pois, Deus haveria de lhe pagar em dobro por esta segunda ajuda que você faria para mim?
- Sim, sem nenhum problema, eu posso levar. Qual a pergunta que a senhora quer que eu faça?
E a pobre senhora repleta de felicidade, encheu os olhos de lágrimas, pela tamanha gratidão daquele jovem mancebo de coração aberto.
E Relata o motivo de estar ali com aquela cachorrinha.
- Pois é meu jovem, o motivo de eu estar a puxar esta cadelinha é que tenho uma filha, por sinal muito bonita,  saúde de ferro de fazer  inveja  a  qualquer  um, mas é surda e não fala. Com isso, a pobrezinha tem vergonha, não sai de casa, não passeia. Você já deve saber o motivo: moleques  ficam a mangar da coitada. Como sofre. Dá dó em vê tanta beleza, isolada dentro de casa ou do quarto. Pergunte-me, a ele, o que fazer para a minha filha ouvir e falar, e tornar sua felicidade completa?
Por fim, a visita que Ossiab iria fazer àquele povoado, terminava ali mesmo. Ruma, então, ao que estava predestinado a fazer. Agora, com uma missão a mais.


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