ESTATÍSTICA DIÁRIA

ADMIRADORES DAS IDEIAS

sexta-feira, 25 de abril de 2014

X LIVRO PUBLICADO - O MONSTREVISÃO - ANO 95 - NATAL/RN


A ORIGEM DO
MONSTREVISÃO

 

Tudo surgiu quando o século da tecnologia invadiu  milhões de lares, onde crianças não mais tinham acesso a ir aos parques, bosques e praias mas, grande parte, estava  condenada a viver confinada dentro de quarto de apartamento pelo resto de suas vidas. Era o século da tecnologia que, coincidentemente, acontecia no Novo milênio. O século XXI.    
          Eis o inusitado século em que as impossibilidades de outrora, caracterizadas pela ficção, passavam a ser as mais cruéis de todas as realidades humanas, representada na figura ingênua do ser infantil. O homem, o próprio edificador da utopia, da ficção tecnológica se transformara em mero objeto do que criara e parecia está cada vez mais submisso à máquina. E suas armas, robôs, computadores, aviões, telefones (principalmente celular), carros, televisores, vídeo gueimes, videocassetes, rádios, etc., inescrupulosamente, invadiram mentes e corações de crianças inocentes. O homem se tornara escravo, vassalo da sua traiçoeira imaginação, num afã exacerbado e incontrolável pela ambição do imediato lucro, em nome de um capitalismo mais que silvícola, o qual o levava a um suicídio iminente, fazendo-o vítima de si próprio pelos seus feitios. As crianças, por sua vez, transformavam os seus mais belos e agradáveis sonhos em eternos pesadelos, porque o vídeo gueime, o videocassete, a televisão eram os seus edificadores de sonhos e de ilusões acabadas, encerradas...
 Klebinho era um garotinho de sete anos de idade que se transformou num exemplo explícito desta nova era. A era Tecnológica. Klebinho vivia a sua infância, diferentemente de todas as infâncias do século passado porque ele nunca se intimidou, sequer teve um pouquinho de medo de bicho-papão, mula-sem-cabeça, papangu, papa-figo, cuca, bruxa e tantas outras lendas criadas pela fértil imaginação humana a século e séculos atrás; lendas de história da nossa literatura infantil que, para Klebinho, permaneciam sempre mortas, ou melhor, nunca existiram para o seu universo de criança. Todos esses clássicos bichinhos horrendos que foram feitos para assustar criancinhas, passavam longe dos seus olhos e da sua imaginação; e, se lia em algum livro, ou, ouvia alguém contar essas estórias, as achava muito sem graças e bobas demais.
Certo dia, um tio seu lhe presenteou com um livrinho de historinhas infantis com todas essas lendas: lobo mau, lobisomem, batatão-de-fogo e outras; leu, mas apenas no propósito de sentir o misterioso medo que diziam toda criança sentir. Não sentiu nada. Em poucos dias o seu livrinho estava jogado e esquecido num canto de sala. Quando a sua vozinha, sábia no contar de estória de Trancoso, certa vez, tentando agradar o neto, quis lhe contar a historinha de Chapeuzinho Vermelho, Klebinho saiu com essa:

- Ah, vó. Essa estória é muito chata. Quem já viu lobo comer gente, e depois, essa gente não morre! Que eu saiba vó. Lobo gosta mesmo é de ovelha; e não conheço ninguém que tenha conseguido tirar a ovelha viva da sua barriga, como aconteceu com a avó de chapeuzinho, que a tiraram vivinha!
Sem dúvida, a vovozinha ficou surpresa com a atitude de seu netinho. Um tanto desgostosa, mas sem dá demonstração disso, procurou entender que geração era aquela em que via o seu neto tão inteligente e envolvido de informações. E, com admiração, o elogiou passando a mão sobre a cabecinha de Klebinho, dizendo:
            - Quanta inteligência, pra tão pouca idade meu netinho! Tome cuidado!  Muito cuidado mesmo, Klebinho! 

            Contudo, Klebinho  guardava um grande segredo consigo e que jamais podia revelar para ninguém. Ele criara em sua imaginação uma espécie de lenda exclusiva, que só ele sabia o medo que sentia daquela horripilante coisa, quando sozinho em seu quarto. Klebinho que havia trocado qualquer tipo de lazer, assim como, o de ler um bom livro infantil, ou ouvir as estorinhas da vovó a viver confinado em seu quarto a criar uma inusitada forma de sentir prazer, bem como, de assistir televisão, sentar-se à frente da tela do computador, jogar e assistir a vídeo. Eis que, com tudo isso, ele criou em sua imaginação o tal MONSTREVISÃO, que passou a existir em sua vida e ser a coisa mais horrenda, mais asquerosa de todas as criaturas infantis já criadas pela nossa literatura; monstro esse, que imperava com poder de alienação. Este era o monstro fruto da era da tecnologia. O Monstrevisão passou a ser uma figura inimaginável, porque não existia nos livros nem nas telas de TV nem do computador nem tampouco em fitas de vídeo. O tal monstro era mutante porque variava de imaginação a imaginação e tomava a forma da qual a criança criava em sua atordoada mente. O monstro só perseguia crianças desligadas, mas que se ligava a um só canal de TV, que não sabiam selecionar programas nem diversificar suas brincadeiras e que se negavam a estudar, desenhar, escrever, contar estórias; o Monstrevisão procurava crianças tecnóides que viviam desnorteadas de sua realidade infantil, entregues ao mundo virtual (mundo do Monstrevisão) sem saberem o que quereriam nem o que faziam do sonho nem da realidade, porque assustadas e perseguidas estavam no mundo do Monstrevisão, o qual vivia e estava latente no microcomputador, no vídeo, e acima de tudo, na televisão, mesmo quando desligados, tanto de noite quanto de dia, bem como, também, quando Klebinho estava a sós em seu quarto a dormir, ou na sala...                    


terça-feira, 22 de abril de 2014

IX LIVRO: VIDA MULHER - CONTOS - NATAL/RN ABR 2014



comentários
Comentário I

     Começo o meu comentário sobre esta obra literária dizendo o seguinte: O que seria do mundo sem os sonhadores, sem os visionários. A obra retrata simplesmente como o nome assim o diz Vida Mulher, vem presenteada para nós leitores (as) com dois contos e um poema. Nos contos encontro-me inserida em diversas passagens do primeiro conto; O Veraluz é que ele traduz, mostra uma realidade nua e crua num misto Cristã com os desafios materiais que a vida nos impõe. O poema é romântico, lindo! Emocionante, o mesmo mexeu com minha alma feminina levando-me ao êxtase. Ah! Como eu gostaria de ter um José igual ao do poema, ainda não o encontrei; ou será que já? E o vento levou... O autor Emecê Garcia é feliz ao escrever uma obra que traduz a beleza singular do ser mulher, mesmo que seja um paradoxo. É meu caro amigo eu estou bem aqui no seu poema quando escreves assim: “ Porém existe na vida, mulher que vive entre Eva e Maria”. Enfim amei a obra literária e desejo que outras (os) possam lê-la e ter uma visão melhor que a minha, nesta também vi que você perpassa outras obras suas da literatura em cordel como: UM CACHO DE FLOR DA VIDA. Termino meu breve comentário deixando para ti algo de Fernando Pessoa  tão bem citado por você em nossas rodas de conversas literárias e de amizade. “Tenho todos os  sonhos do mundo”. Parabéns para nós pela magnífica obra literária.

                                       Maria da Apresentação, ou simplesmente Patão.
                                                (Professora)

Comentário II

Essa é uma estória criativa que apesar de tudo não deixa de ser uma história vivenciada por algumas mulheres. As mulheres de ontem e as mulheres de hoje; as Marias que muitas vezes são obrigadas a fazer tudo que um homem quer: passar, lavar, cuidar da casa, dos filhos e dele (o homem); e quando acorda para a vida já perdeu um terço da sua liberdade. Essas são as escravas da vida, que mesmo sem saber, elas são escravas sim, e ainda tem aquelas mulheres que trabalham só para manter o marido; tem também aquelas que são vaidosas que é como a Maria Carioca que trabalha para luxar, estudar e se formar para não depender de homem nenhum; casa-se, tem filhos, paga para alguém cuidar deles, mas não deixa de educá-los para que eles se formem. Já a Maria pernambucana, mesmo não sendo muito esperta, soube determinar a sua vida do seu jeito, trabalhando, cuidando de três filhos sem nunca lhes deixar faltar nada, principalmente à educação deles, e mesmo sem gostar muito de estudar não quis o mesmo destino para os filhos. Estas são as mulheres que vivenciam o passado, o futuro e o presente a cada dia, a cada momento na vida de cada uma das Marias. As oportunidades de ser livre nunca deixaram de existir, apesar do pequeno espaço, nós mulheres é que muitas vezes, não soubemos aproveitá-las. O livro Vida Mulher de Emecê Garcia depois de ler mostra-nos uma realidade em cada verso da sua poesia ou na filosofia criada pelo poeta.
 Marina Garcia – Professora.
orelha
         Para falar de uma obra literária se faz necessária as ferramentas da crítica ou de muitos críticos professores de literatura, que a possuem para explorar com distinção. Eu certamente sem essas ferramentas atrevo-me para não ficar indiferente, diante da produção literária do potiguar, filósofo, poeta cordelista, escritor, Maurício Garcia.
         Maurício Garcia, como poeta estreou muito jovem ainda, contradizendo uma postura de militar no pós-ditadura, com seu livro de poemas Dendroclasta.
       Como escritor, de prosa fluente e segura e aguda percepção do observador, vem enriquecendo com suas produções, informando o desenvolvimento de sua mentalidade literária e sócio-cultural.
    Em Vida Mulher – Dois Contos e um Poema, ele demonstra como é o compromisso fundamental da literatura, documentando os apelos do drama social no qual ele o faz com destreza e ainda caracteriza na sua obra a realidade, pois, no seu discurso oferece, a tragédia social como se apresenta catalisando sempre que possível a realidade ambiente. Com isso a saga literária de Emecê Garcia traz a capacidade de reciclar as incertezas do cotidiano e de atualizar a sua própria modernização com a postura de escritor assumida na feitura de Vida Mulher – Dois Contos e um Poema, Emecê Garcia efetivamente testemunha sua argúcia e seu tirocínio. Um contista que tem consciência de seu exercício e sabe até aonde é possível conduzir os arrebatamentos da sua imaginação e o seu amor pela arte da escrita.
      A grandeza de um ser humano reside em sua capacidade de amar, Maurício Garcia com esse atributo em abundância, doação divina, revela o quanto é possível desafiar com esse fantástico instrumento e mecanismo das letras, e torná-la mais palpável e mais acessível a todas às camadas sociais.

Natal, 26/07/2007

Rosa Firmo é professora, poetisa e escritora cearense.
  

apresentação
Quando me honrou com o pedido de uma breve apresentação para essa obra, senti-me naturalmente privilegiada. Como resumir essa obra de Emecê Garcia que fala sobre as mulheres de sua aldeia banhada pelas gamboas do Potengi, ora em prosas, ora em versos? Esse é mais um filho saído das entranhas de sua mente com fortes pinceladas filosóficas e o sabor da cumplicidade no caminho das letras.
Em “Veraluz”, pescadores e o mangue, um tão presente na vida do outro. Suas mulheres que esperam a volta dos parceiros com seus pescados do mar e que tomam conta da prole tão extensa! O autor brinca com nomes e palavras para descrever famílias que nos parecem conhecidas, como os vizinhos que habitam a nossa aldeia natal.
Seus escritos têm a sonoridade dos ventos que sopram do norte para a aldeia, trazendo no leve roçar da brisa a sensibilidade à flor da pele. Ao lermos esse livro, somos tomados por um turbilhão de emoções, que é a prova concreta de que o autor estabelece um intercâmbio afetivo com seu público.
Numa viagem transcendental onde a mulher se transforma em anjo, o leitor percebe que existem fatos que são colocados em nossa vida para nos conduzir ao verdadeiro caminho. Há um furor cortante da sensualidade, mas imbuído do esplendor simples da realidade humana.
Com competência e habilidade vai compondo sua rede de poesias, utilizando como matéria-prima as morenas que povoaram sua pré-adolescência. No cordel feminino das “Três Marias”, há a presença do amor paixão, amor inspiração, onde recordar é agradecer, não somente viver.
Em “Lucina”, a prosa volta para flertar com a Filosofia que tenta explicar a mulher forte, dona de seu destino.
Por isso, “Vida Mulher” leva-nos a pensar como Pablo Neruda: “Acredito na personalidade através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artística”.
Kátia S. Azevêdo
Letras e Jornalismo - UFRN


veraluz

       Na madrugada do vigésimo segundo dia do segundo mês do ano quarto da década de noventa do século XX - há seis anos para o fim do mundo -, um homem de 45 anos revive em “alto estilo”, o apavorante tormento da sua infância e começo da sua doce révora. Pois, acordara literalmente, molhado, suado por sonhar que estava morrendo afogado em águas revoltas de sua infância. 
Antes, que tudo isso fosse absoluta veracidade, assim não teria que sofrer o desprazer ou a vergonhosa humilhação, na qual, teria que passar por enxugar o chão da sala quase sempre, ou, a sair pela rua, com a rede na cabeça a pedir dinheiro na vizinhança para comprar sabão e depois ter que lavá-la.
         Não existe coisa mais degradante para um cachopo que já aflora para sua adolescência, mormente, quando começa a despertar os primeiros sentimentos do flerte pela cachopa de olhos claros, cor branca, cabelos negros e longos, a qual chegara a poucos dias no bairro: a bela e encantadora Vertu.
         Quão humilhante era ter que ir à casa da tia e esta, à noite, colocava uma enorme bacia debaixo da sua rede para não ver o seu piso de taco sintético manchado. Quão doloroso era suportar a moça, amiga de sua mãe, passar por ele e perguntar sempre:
         “O meu namorado ainda anda molhando os lençóis?... Assim eu não vou poder me casar com você.”
Até que lhe vinha à ideia, a mesma e maldita vontade de fazer aquilo que um amigo seu fez, certo dia, na sua atordoada humilhação querendo cortar o seu mal pela raiz: amarrou a ponta do seu “toyou” com um cordão e, nunca mais... cortou mesmo.  
         Zemil, portanto, tinha medo só em pensar de ter que fazer o mesmo, por isso, não arriscava. Tinha horror só em pensar vê o seu “toyou” amarrado na ponta, pressionado por um cordão, a sentir aquela dor insuportável no pé da barriga.
         Não. Isso não, jamais ele faria. Preferiria então passar por toda essa humilhação. Tal qual a que, agora, aos quarenta e poucos anos estava a passar, por ter sonhado magnificamente com a belíssima e mirífica Vevê: a Virgem Sã. Apesar de seu sentimento voltar-se mesmo, era para Vertu.
         Seria um caso patológico? Não, não seria mesmo! Na Faculdade de Odontologia havia lido algo a respeito, que o deixara tranquilizado. Ou, seria o mesmo desejo frustrado de adolescente que nunca pôde realizá-lo? Talvez, não o desejo frustrado de adolescente, mas o próprio afã de homem afogado em pecado. Se não era nada patológico nem frustrante, então, como que agora aos quarenta e cinco, quando tudo já se parecia resolvido, realizado e acabado, voltava tudo assim tão debilmente? Seria, então, castigo?

         Vevê era uma distinta menina de uma família de seis mulheres - uma intrusa - e dois homens, que morava num bairro pobre da periferia de Natal. A sua casa, apesar de ser de taipa, tinha um asseio que excluía aquela visão injusta que se costuma, geralmente, fazer sobre a pobreza; tinha um brilho peculiar, distinto, tanto externo quanto em seu interior. Porém, a sua família não fugia a regra das distorções que existem na maioria dos lares do planeta. Era pobre, muito pobre mesmo.
         Pois é, e além de pobre, o seu pai era alcoólatra. Este trabalhava de pescador. Tinha as suas farturas na alta estação, mas no inverno mal se tinha o que comer e a única saída que via era mulher, menino e filhas caírem no batente para ajudarem nas despesas da casa.
         Vevê era a mais nova, por isso tinha que ficar em casa aos cuidados da avó que morava vizinha. A menina era um graveto de gente, mal se sustentava de pé. Era franzina em demasia e sempre estava desidratada e de quando em sempre estava tendo passamentos, calafrios e desmaios constantes, arrebatada pela fome. 
         Pobre e rica Vevê, pálida, desnutrida, mas de uma beleza de se fazer inveja a qualquer moça da cidade, e de deixar arregalados os olhos de muitos pés-de-chinelo por aí. Era o diáfano milagre da idade que a transformara em mulher. Acabara de ingressar na adolescência.
         Certa vez, Vevê ganhara um belo vestido lácteo-nuvem, presente da sua madrinha. E, então, uma beleza ímpar se realçava quando ela, aos domingos, pela manhã, ia para Igreja Assembleia de Deus (a mesma que a sua madrinha freqüentava há anos); vestida do seu lindo vestido branco-virgem, o qual se estendia até abaixo dos joelhos, em seu corpo franzino de criança-mulher. Dentro daquele seu vestido quase longo, Vevê escondia as canelas finas de maçarico e o seu rosto ficava mais corado com um suavíssimo toque de ruge, que ela usava, escondido da irmã mais velha só para disfarçar um pouco o amarelo do rosto, e assim, ela se transformava numa personagem de favela digna de uma parábola moderna.

         O pai de Vevê, Pindaíba Pindaí, quando não estava no mar, estava no bar, no boteco de Jericocó com os amigos de copo, a tomar todas e mais algumas, ou senão, jogando sinuca, baralho. Pindaíba era daqueles homens com “H” bem grandão. Ostentava o porte de machão e se gabava todo assanhado em dizer que possuía duas mulheres. Isto é, a morarem, ambas, dentro da mesma taipa sem problema algum. Eram Idiotina, a legítima; e Inferta, a outra. Estes são os seus benditos e sagrados nomes que seus pais deram, ou seja, um tipo de tradição acima de tudo no nordeste que se segue numa mania de juntar o nome do pai com o nome da mãe.
         Idiotina (Idio, do seu pai, Idioclécio e Tina, da sua mãe, Cristina) sua mulher, apesar dos quinze filhos que tivera, o tempo não lhe parecia ter sido tão cruel. Assim como a sua filha, Vevê, ela também era magra e tinha a pele que não caracterizava os cinqüenta e tantos anos nas costas. Dos quinze bugrelos que botou no mundo, apenas cinco sobreviveram para contar e viver a história de miséria sem fim. Mulher exemplar, submissa até se dizer chega, mas via no marido um tipo de estupidez aceitável, pois, apesar de rude e grosseiro era um homem trabalhador, um pescador de gabarito e de respeito.
         A desgraça só se dava quando chegava o inverno e a maré não estava para peixe literalmente. Ele perdia as rédeas do senso e metia o pau a beber e, ao pé da letra, o cacete em Idiotina e Inferta, em ambos os sentidos.
         Mesmo assim Pindaíba, para Idiotina, era como se fosse Deus no céu e ele na terra, que nem no dia em que achou de levar para dentro de casa Inferta (a outra), Idiotina não hesitou na credibilidade dele, pelo contrário, viu em seu macho o poder de agora em diante satisfazer sexualmente, na mesma cama, duas mulheres. Ela e Inferta, a “coitadinha”.
         “Aí, é que é homem com ‘H’ bem grandão”.
         Dizia Idiotina satisfeita e orgulhosa.
         Marido e mulher tinham a mesma justeza de conceito. Idiotina em casa e Pindaíba a se amostrar no boteco de Jericocó.
         Em quinze anos de convívio tiveram quinze filhos, todavia, dez deles haviam morridos, e a morte para eles se tornara uma mania, uma coisa comum. Tanto para eles, quanto para as meninas e o menino inocentes.
         Pindaíba não se preocupava com a morte nem com a vida de ninguém, mas apenas com a quantidade de filhos que era capaz de produzir. O endeusamento de cabra-macho também era caracterizado, com muito orgulho, com o velho adágio que ele próprio adaptara, e que não se cansava de dizer, na porta do boteco:
         “É, meus amigos, o cabra pra mim provar que é macho mesmo, tem que ser um fora, um dentro, outro no pensamento; e se desse, seria um a todo momento”.
E a rapazeada, do boteco de Jericocó, achava aquilo bonito e muito engraçado. Os dizeres de Pindaíba eram sabedoria de boteco. Filosofia de mundano. Por isso, muitos o seguiam, ao pé da letra, o seu exemplo.

         A filha mais velha se chama Boslla, tem vinte anos, se perdera no primeiro “boi” que teve; aos dez anos, já era mãe solteira, e até hoje nem Pindaíba nem Idiotina sabem quem foi o pai do bugruelo - quem fez o bucho nela? - só ela e Deus sabiam e ninguém mais. Nunca falou para seu ninguém, nem mesmo para o cabra safado, que ao invés de assumir, sumiu no meio do mundo...

         Fezzel, o primogênito, macho que nem o pai, aos dezesseis se amancebou com uma coroa, quinze anos mais velha do que ele. Zeferina era o nome dela a qual levou a sério o velho ditado: “filho de peixe, peixinho é”. Eles não eram peixes, mas desse mar, tinham domínio.
Fezzel, como já se podia desconfiar, não era flor que se cheirasse, estava a tomar o mesmo rumo do pai. Zeferina, já de orelha em pé, meteu o pau, ou seja, a mexer os pauzinhos, a fazer de tudo só para prender Fezzel a seu próprio rabo-de-saia, para ele ser só seu e de mais ninguém; e de tudo que ouvia falar sobre simpatia, de feitiço para prender homem, se metia a fazer.
         Fezzel saía para trabalhar, ela corria para o quarto, pegava a cueca dele, dizia com fé umas boas lorotas, fazia umas orações fortes e depois, a enchia de alfinetes, caso o marido saísse com outra mulher, certamente, iria brochar. Ou seja, não seria macho para mulher alguma, para nada nem ninguém.
         Certo dia, Fezzel chegou do batente, Zeferina toda arrumada cheirando a loção e brilhantina nos cabelos, partiu para atacar o “garanhão” sedento e sebento de suor até a alma.
         Havia decorridos alguns minutos, mas Zeferina não virá nenhuma reação do seu “garanhão”, e, num átimo do juízo ela se lembrou e percebeu que a coisa funcionava mesmo.
Disfarçadamente, inventou de ir à cozinha e foi desfazer o feitiço. Ao retornar, Fezzel estava a subir nas paredes, feito bicho no cio, feliz por se sentir macho outra vez e ter superado o pesadelo desgraçado. Sem desconfiar um tiquinho sequer da mulher. E a “potranca”, por sua vez garantia a seu “garanhão”, por aqueles bons momentos de prazer e de felicidade, o poder da procriação e de estender a sua espécie por geração a geração.

         Coccoly era a filha de número dois na escala decrescente das meninas. Esta parecia ter arranjado o caminho certo. Terminou o 1o Grau. Poucos eram os que conseguiam essa façanha, naquele bairro pobre. Agora, Coccoly tinha que estudar no centro da cidade, porque ali não tinha 2o Grau.
         Nos primeiros meses, ela já estava de namorico com um colega de sala; e, nove meses depois, bem aplicadíssima ao ato de “isto dar”, como só ela mesma, tem nos braços o merecido diploma de uma única matéria: “prática sexual”.
E ali, no espaço da minguada casa, da minguada vida divide-se o coração de Idiotina, para dar lugar a mais alguém: a filha, o genro e o neto.

         A penúltima das irmãs é Merlla, esta se engraçara por Paller, sobrinho de um veranista. E foi paixão, à primeira vista. Saiu de casa e foi morar na casa da mãe do marido, sua sogra. 
Paller é sobrinho de veranista que é bem empregado, mas ele não, não dá um prego numa barra de sabão. Não gosta de trabalhar, vive de pouco ou quase nenhum biscate. Vive de rolo, a trocar e vender o que pega: relógio, bicicleta, rádio, tênis, corrente, etc. às vezes e sempre de origem duvidosa. Não é muambeiro. Nem isso consegue ser. Isso também é trabalho árduo para ele.
         Merlla, sua mulher, gosta de trabalhar; vive dos afazeres de doméstica na casa de um, na mansão de outro, e ganha o seu mísero dinheirinho. Agora, ela vive bem e mora bem, porque na casa da sogra tem muito espaço. E com a ajuda de um, com a ajuda de outro, e do seu próprio esforço, ela conseguiu erguer quatro paredes de um barraco no fundo do quintal e mora numa casa de tijolos com reboco. Coisa que o seu pai nunca conseguiu, pois, até hoje, vive a morar em casa de taipa.
         Mas tudo tem o seu preço, Merlla tinha o seu cantinho, e um Paller muito violento que bebia demais, quando chegava em casa, quebrava até o que não tinha. O engraçado é que ele não tinha dinheiro para dentro de casa, mas tinha para fora e encher a cara todos os dias de drogas lícitas.
         De quando em sempre, Merlla aparecia na casa da mãe com marcas no corpo, um roxeado aqui, um vermelhão ali. Era esbofeteada na calada da madrugada, pelo cambalacheiro do marido. De vez em sempre, ouviam-se uns gritos perdidos no sem fim do silêncio da madrugada, de mulher masoquista e de homem sádico. Endossando cada dia a máxima sadomasoquista.

         De tudo o que já ocorrera à família Pindaí, ainda era muito pouco diante da desfeita, da humilhação na qual estavam a passar, principalmente, as filhas e o filho seus. Era, justamente, com relação a seus próprios nomes, quando as pessoas - umas por brincadeira, outras por maldade mesmo -, faziam menções irônicas ou de forma pejorativa de seus nomes. Vevê, entre as irmãs, tinha um nome digno de sua pessoa e fazia parte de uma inexplicável exceção.
         A desgraça de tudo isso, portanto, teria sido o pai delas, Pindaíba Pindaí. Este, toda vez que nascia um rebento, convidava os amigos para o “mijo do menino” (mesmo que nascesse menina). E, ali mesmo, no boteco de Jericocó, era cachaça a noite toda e, de cara cheia, no dia seguinte, ainda bêbado, ia para o Cartório fazer o registro dos recém-nascidos; nesta altura já havia perdido o papel que o levava com o nome da(o) filha(o) escrito; e, com o juízo amolecido pelo álcool, confundia, enrolava tudo na hora. Por isso, deu exatamente no que deu.
         A filha mais velha de 20 anos - se não fosse o imperdoável erro do pai - se chamaria Bósnia; a sua irmã encostada seria Cottoly; a outra, Perlla, e o irmão, de 21 anos, seria Fibbel.

         Vevê, por ser a mais nova, se salvara por graça de Inferta que, desta vez, foi quem tomou a frente do amante para ir ao Cartório. Certamente, por um milagre, Veraluz se salvara da injustiça dos nomes dados pelo pai - “cu-de-cana”, por natureza - a suas irmãs, as quais, não tiveram a mesma sorte sua. Sim, se existia alguma coisa que elas jamais iriam perdoar o seu pai, justamente, seria a injustiça de ele lhes ter trocado os seus benditos nomes.
         Vevê se vira livre do nome, mas não escapara da sina.
         E quanto a Inferta, este não existe explicação, cogita-se apenas a possibilidade de ser uma corruptela da palavra infértil talvez, aquela que não gera.

         Se existe vida sofrida no mundo esta não é a de Idiotina, mas a da pobre e pequena Vevê, sua filha, a qual repudia todos os comportamentos vividos no âmbito da sua família. Uma desmoralizada vivência que, sequer, dá para narrar tim tim por tim tim. Estes ela guarda no âmago do seu coração amargurado.
         Apesar dos pesares, Vevê não é uma menina normal, e, a sua anormalidade se caracteriza em sua religião, protestante, pois é a única que, por intermédio da sua fé, consegue sonhar. Sonha em trabalhar só para ajudar a sua sofrida mãe. Tem desejos e muitos sonhos. Pensa diferentemente das suas irmãs. Enquanto a mãe aceita, submissamente, as imposições e estupidez do seu pai, ela o abomina desgraçadamente, em ter que ver a sua mãe dividir a mesma cama com outra mulher.
         “Meu Deus, como pode acontecer uma coisa dessa! E, ainda por cima,  ter que apanhar. Sem contar que a cada nove meses, sempre tinha que ter um filho”. Vevê reprovava, radicalmente, tudo aquilo que via dentro da sua casa.
         Certa vez, a sua mãe querendo lhe dar um pouco da sua minguada educação. Disse-lhe que, quando ela se casasse e o seu marido lhe viesse bater, pudesse deixar porque todo homem sempre tem razão. É sempre ele quem faz a lei dentro de casa.
         Vevê achou aquilo o cúmulo do absurdo. E surda se fez ao que a sua mãe lhe dissera, porque se calara. Sem dizer palavras pôs-se a chorar. Procurava encontrar, na terra, respostas para tudo aquilo. E refletia querendo entender sobre o tipo de mulher que era a sua mãe, para aceitar tantas desgraças, com tanta submissa naturalidade e inocência humana.
         A concubina de Pindaíba era como se fosse uma visagem, ou seja, um mau encosto para Vevê, mas uma sombra do bem para Idiotina; Inferta era uma “anja”, como dizia sua mãe. Ela era o bem e o mal de tudo que existia dentro daquela casa. Para Vevê, Inferta seria o anjo decaído.

         Inferta não podia ter filhos e se via realizada em cuidar dos filhos de Idiotina. Era como se Inferta fosse a empregada dela (Idiotina). Mas, como a amante de Pindaíba, sentia-se a própria mãe dos filhos de Idiotina. Esta agradecia a Deus por Inferta lhe ajudar no seu parto e durante o tempo em que estava de resguardo. Pois, com ela ali, ao seu lado, teria a garantia de que Pindaíba não teria que sair com qualquer vagabunda, qualquer rapariga por aí.
E chegava a boquinha da noite. Ali, estava Pindaíba, todos os dias, sem falhar um dia sequer. Estava ele, ali, a encher Inferta de amor e de filhos, Idiotina. E nenhum tiquinho de ciúme aflorava no coração nem duma nem doutra.  

         Aos treze anos de vida Vevê arranjou um namorado. Era irmão. Ou seja, fazia parte da mesma Igreja sua. Um rapaz digno da sua pureza, da sua ingenuidade. A justiça divina alumiara o caminho para encontrar a pessoa certa no lugar certo. O homem que lhe iria salvar daquele “antro de perdição”; que iria lhe proteger e lhe isentar de qualquer sedução ou desvio mundano. Desvio este, tido nos exemplos das suas irmãs. Não as da igreja, mas as da sua casa, as de sangue seu. Bom, desvio mais para seu namorado e ela. Porque para as meninas, suas irmãs, Vevê foi quem se desviara; se desviara de religião primeiramente, agora de vida.
         “Ah, a idiota está a namorar um crente. Coitada!”
         Diziam as irmãs irmãs.
         Fidder era o nome do seu namorado. Tinha um trabalho digno, terreno para construir. E isto, para Vevê, já lhe era de grande valia. Poderia sair de casa e morar no que era seu. Poderia ser chamada de esposa e ser uma dona de casa para poder criar sozinha os seus filhos... Fidder era tudo que ela possuía em sua vida agora. Amava-o como a sua própria vida ou mais que ela. Só não gostava de Fidder, quando este a impedia de representar a peça religiosa na igreja. Achava ele muito ciumento. Nessas horas fazia-se exigente em demasia, e, às vezes, estúpido como todos os homens...
         Aí, Vevê percebia em seu príncipe a mesma figura do seu pai e, nela, a de sua pobre e miserável mãe. Batia-lhe no coração um desgosto, e só pensava em abandonar tudo a viver sozinha, enclausurada, a pedir em oração a N. S. Jesus Cristo, por uma vida melhor, e ser para Ele, apenas, a sua eterna criada, mulher de Deus.
         Vevê sempre percebeu a necessidade que passava em casa com a sua mãe sempre reclamando sem ter o que comer. Seu pai há um mês que não aparecia em casa; fora pescar lá para as bandas da costa do Ceará. Foi o que dissera antes de sair de casa. E já deixava todo mundo preocupado, apesar de não ser a primeira vez que isso acontecia. Restava saber se ele estaria mesmo no mar ou, na verdade, em algum bar.
         Vevê, contrariando o namorado, decide trabalhar. Arranja um trabalho num consultório odontológico na Cidade Alta, na Av. Rio Branco. Ela acabou de fazer dezesseis anos e a natureza se incumbiu de moldar a beleza sutil, como a que aflora em toda menina, que atinge essa idade. Mas ela se revestia de uma beleza irradiantemente insólita. 
         De corpo esbelto - as mesmas canelas de maçarico -, mas proporcional a seu físico; esboça uma beldade peculiar de pré-adolescente. Cabelos lisos longos em vestido longo também. Tais características lhe garantiram o emprego no consultório do Sr. Zemil. Se não fosse crente, certamente, seria uma boa candidata às passarelas  do sucesso. Que Deus seja louvado! E que a proteja dessa perdição de mundo mundano, basta o que ela já tem visto - dentro da sua própria casa - e mesmo assim, ainda mantém intacta a sua pureza, a sua virgindade. Aleluia! Aleluia!

         Todavia, para Sr. Zemil, jamais despertou tamanho interesse de beleza por suas secretárias, mas achou em Vevê algo mais que uma simples menina de dezesseis anos. Viu-a uma virgem em jeito, em cor, em forma, em estilo nos cabelos, na face, no corpo.
         Pois, no seu todo de menina, havia uma coisa única, inusitada e muito peculiar. Vevê tinha uma leveza sutil na fala, no andar, no olhar que parecia ter adquirido, especificamente, na sua religião, sua igreja. O interessante é que, quase todas as meninas, evangélica, da sua idade, se revestiam desse mesmo aspecto de transcendental pureza aparente. Mas ela não. Ela era distinta. Sem aparência nenhuma. Era puramente essencial. 
         Era justamente isso que a fazia diferente de todas as beldades que ali passaram na clínica de Sr. Zemil. Vevê se revestia realmente da pureza das virgens, que se acentuara mais ainda por ser evangélica, protestante, da igreja Assembleia de Deus.
         Sr. Zemil era homem de respeito, por isso, Vevê lhe falara de trabalho. As meninas as quais haviam trabalhado com ele e que ela as conhecia, lhe deram boas informações sobre Sr. Zemil. Inclusive, uma irmã da igreja a que lhe indicara o emprego.

         Sr. Zemil tinha família. Era bem casado. Tinha três filhas e uma esposa muito bonita. Era um excelente dentista e, acima de tudo, uma extraordinária pessoa. Respeitado e amado por muita gente, inclusive, por pessoas carentes. Pois prestava serviços à comunidade carente por bel prazer. Isso o fazia um homem distinto. Aqui estava o seu talento e maior prestígio. Visto que, tudo isso, não fazia por interesse político, mas por ser dotado do fazer caridade.
         Certa tarde, como ele sempre fizera com os seus empregados dantes, Sr. Zemil foi até a sala da sua nova secretária. Era a primeira semana de Vevê no trabalho. Entrou, de súbito, que ela se surpreendera. Ele pediu mil desculpas, educadamente, por ver que ela estava a ler a pequena Bíblia de bolso, a qual, ela sempre a deixava aberta sobre a sua mesa na página do Salmo 23: “O Senhor é o meu Pastor...”
         E, como era de se esperar, Vevê ficara encarnada de vergonha e sem palavras. Mas as palavras do próprio patrão lhe serviram de calmante. Ela se recompõe do susto e se sente à vontade, quando ele se senta na cadeira, igualmente, a um dos seus clientes em consulta. E Vevê, agora, estava segura. Porém, ele, com os olhos seus fixos nos olhos tímidos dela, não disse mais palavra alguma. E foi o silêncio mais conturbador que ele já sentiu em toda a sua vida. Vevê o esperava que falasse, e ele, terminou por dizer - se desculpando, é claro - que se lembrara da reunião marcada para aquela hora, que depois voltaria a conversar com ela.
         Vevê não se incomodara nem um pouco. Pois sentiu na voz do “doutor” o mesmo carinho e respeito que ele sempre teve por ela. E, justamente, ela havia agendado àquela reunião.

         Na reunião, Sr. Zemil não estava de todo. Parte ficara no consultório. Estava a admirar a boca de um paciente. Aliás, de uma. Dentes brancos e perfeitamente alinhados, numa boca que exalava um odor agradável de caldo de cana fresquinho. Ele a segurar a bela mandíbula macia, desviava o olhar para os olhos semi-cerrados da paciente. Em seguida, estava a afagar os ébanos cabelos da própria Vevê, a sua secretária.  Por várias vezes procurou se concentrar na reunião. Mas a imagem que lhe vinha era muito mais forte e de um prazer arrebatador, o qual terminava por roubar a cena daquela reunião enfadonha.  Esquecer era possível. Mas tentou apagar e não conseguiu. Só conseguiu de todo quando a reunião realmente encerrou.

         No dia seguinte, à tarde, Sr. Zemil deu vazão à conversa que prometera à secretária. Apenas algumas recomendações de praxe. Em seguida, conversaram coisas aprazíveis. Relativas ao trabalho, à família, e, acima de tudo, à Igreja.
         Pois “doutor” Zemil era também evangélico, da Batista. Mas andava afastado em detrimento dos afazeres que assumira do próprio ofício. Vevê se sentia segura e protegida, porque Sr. Zemil lhe era mais que um patrão. Um homem que lhe dava bons conselhos só poderia ser um amigo, um bom amigo.
         Visto que, o seu pai, nunca lhe aconselhara em nada e para nada. Ao contrário, só via dele maus exemplos. Dele, e das demais pessoas de lá.  A conversa se estendera por duas horas.
         Sr. Zemil contara a história da sua vida. Disse que nasceu e morou no interior do Ceará, Juazeiro. Era devoto de Padrinho Cícero e nunca perdeu uma missa aos domingos. Tudo isso, graças à sua mãe, terminou sendo mandado para o Seminário e se tornara padre. Uma história muito longa. Anos após, descobriu que não servia para o Celibato. E se converteu para Igreja Batista. Hoje, se esforçava para ser Pastor. Era só abdicar de alguns excessos proporcionados pelo ofício, que passaria a se dedicar mais à igreja.
         Vevê ficara encantada com o testemunho, a história do seu Zemil, que as horas se passaram e ninguém percebeu.
         Sr. Zemil se despediu da secretária e saiu. E Vevê, leve como uma plumagem levantou-se levitando a entoar um belo hino da sua igreja e foi para casa felicíssima.  

         As coisas, como sempre, não andavam muito bem na casa de Vevê. Há mais de uma semana que não se tinha o que comer dentro daquela casa. Encontrava-se a mistura facilmente, era só ir ao mangue pegar alguns aratus e caranguejos, mas o arroz, o feijão, a farinha não. Estes eram difíceis se arranjar, às vezes, tinha que se pedir. E, Vevê quase não conseguia se levantar pela manhã para ir ao trabalho. Tomava um caldo da caridade, um reforçado cabeça-de-galo, mas era a sua oração, a sua fé - o alimento da alma - que a conduzia até o trabalho.
         Dentro do ônibus lotado, de quando em vez, vinha-lhe o escurecimento de vista e dava graças a Deus quando chegava ao consultório. Ali, ela ia até a cozinha, a copeira lhe dava uma xícara de café com um misto quente, e assim, ela matava quem estava a lhe consumir as carnes. Porque era a sua bendita alma que lhe sustentava a vida.
         Todavia, ela não mais podia esperar pelo seu pai para botar comida dentro de casa. Teria que tomar uma atitude. A mãe, a outra, o sobrinho, a irmã todos a esperarem por comida e nem o cunhado nem o pai traziam-na. 
         Vevê, no fim da tarde, decide falar com o patrão para que lhe adiantasse um vale. E quando procurou lhe dá explicação, Sr. Zemil não quis saber e foi logo assinando um cheque o qual lhe passou a suas mãos.
         Pois, já era do conhecimento de Sr. Zemil a vida sofrida que Vevê passava. Conhecia todos os desajustes da sua família, porém nunca sequer Vevê lhe contara nada. Talvez, a irmã a que lhe indicara o trabalho lhe tenha contado tudo. Vevê, por sua vez, achava melhor que fosse daquela maneira. Não gostaria de repetir a sua merencória vida para ninguém, mormente, para o Sr. Zemil que era um patrão tão bom, para ela.

         Faz dois meses que Vevê trabalha no escritório de Sr. Zemil. E, também, há dois meses que a vida do quarentão havia mudado taciturnamente. Zemil andava muito estranho, isto é, para a sua esposa e filhas. Todavia, era uma estranheza agradável, quase imperceptível, para ele; menos para ela (sua esposa), que por sinal, havia dado à luz e se recuperava de uma cirurgia.  Pois, tinha o sexto sentido bem aguçado, para essas mudanças do marido. Ela não era nada boba não.
         Dona Vertu deu à luz e por três meses teve o merecido repouso pós-parto. Pois teve que passar por uma cirurgia - cesariana - muito delicada. Zemil, como marido exemplar, deu à sua esposa toda a assistência devida. Era o primeiro rebento de sexo masculino, fora a sua última tentativa para que viesse um homem na família. E por desejo seu e sorte sua o veio. Agora a prole crescera, eram três meninas e um menino. Este seria o seu sucessor que iria seguir a máxima bíblica “Crescei e multiplicai”. Sr. Zemil não era de ficar a dizer isso, mas calava-se consentindo com o seu afã de macho.
         Dois meses, e o seu estranhamento agora, agredia com prazer o seu coração, a sua cabeça, o seu todo de homem. Procurava arranjar alguma explicação para tudo aquilo, mas não conseguia. Era a imagem de sua secretária que lhe entrara na vida, sem a sua permissão.
Suas noites eram de sonhos intermináveis a galopar num corcel por estrelas, asteróides e planetas. Era uma sensação transcendental, tal qual, a que sentira no auge da sua révora, a mais de trinta anos atrás. Era como se estivesse a rejuvenescer e, com isso, a conquistar a sua primeira namorada. Quão bela, quão meiga como fora há vinte anos a sua Vertu. Porém, toda essa beleza, toda essa meiguice fora transferida para a sua próxima e tão distante secretária Vevê. Pois então, era esta jovem a qual estava a lhe fazer resgatar os desejos latentes e mais genuínos, os quais foram vividos em sua doce adolescência tão distante. 
         Por dois meses sonhou com Vevê mais do que já sonhou com a sua Vertu em doze anos de casados. Eram sonhos em que, como homem de sua idade (quarenta e cinco), de sua formação, de sua índole parecia ser uma coisa muito louca. Uma tentação. Mas, acima de tudo, aceitável para quem vive uma paixão.
         Certa vez, sonhou fazendo amor com uma jovem, a qual, não lhe revelava o seu rosto; revestida de um véu negro, apenas o seu corpo se expunha numa nudez límpida de princípio dos princípios de virgem.
         Tudo era como se fosse o primeiro tudo de um todo. O primeiro desabrochar de flor mulher no éden do afã de Zemil, a primeira essência, o primeiro fruto de amor germinado na terra. O distante éden.
         Uma brisa leve e breve, a sussurrar no seu corpo e no da virgem que, de súbito, ergueu com certa leveza o véu negro e a fez mostrar o semblante mais belo que os seus olhos já viram. Tinha o reflexo dos seus olhos os olhos dela, mas aquela sutileza de mistério não lhe era de todo mistério, algo peculiar lhe era aos seus sentidos. O cheiro, o toque, aquele súbito olhar, eram-lhe os mesmos dos de sua adolescência, e ele tinha toda certeza disso. Ela era a mesma de quando conheceu a sua Vertu, quão bela, quão meiga como só ela mesma. Certamente era ela, a sua Vertu, fazendo-se obscura como em todo sonho. E ele tinha toda certeza de que não estava acordado.
         Portanto, a natureza se incumbiu de lhe revelar a verdadeira face da misteriosa mulher, quando um vento mais que proposital arrancou-lhe o negro véu do rosto e, ali, à sua vista, se expôs belo, monumental e transcendental semblante, na completa nudez de Vevê, que estava tão explícita quanto qualquer realidade. Zemil se deleitara e acabara de fazer amor como sempre fizera. Sentira-se leve pelo gozo. E, o coração, agora, batia no compasso da paz dos mortais...
         Estava suado e percebeu, também, que estava completamente molhado. Ensopado, como nunca havia ficado após ter crescido. Foi aí, que se lembrou da sua terrível infância, quando ainda fazia xixi na cama.     

         No dia seguinte, quando Zemil chegou no consultório, não conseguiu nem olhar na cara de Vevê. Pois estava com um profundo sentimento de culpa terrível. Foi direto para sala de trabalho, nem bom-dia conseguiu dar a sua secretária. Ela mesma ficou muito sentida sem conseguir entender a atitude do seu patrão. 
         Ainda era manhã, onze horas, quando ele lhe foi fazer a visita de praxe, que sempre fizera à tarde. Mas Vevê, para ele, não tinha mais o encanto, a beleza que sempre admirara de ver nela. Ela era, agora, uma mulher como todas as outras do mundo, comum e com as mesmas trivialidades desgastadas e enojadas de sempre. 
         Não teve muita conversa com Vevê. Já chegara ali decidido ao que viera fazer e fez. Demitiu Vevê sem nenhuma explicação aparente. E isso foi muito doloroso para ela. Feriu-lhe bastante. Uma verdadeira falta de consideração. Uma atitude covarde e cafajeste.
         Vevê transtornada de dor, tomada por um sentimento cruel e devastador, como se tudo fosse rasgando-lhe o corpo, o peito, a lhe retirar o coração, assim a ferro e fogo, a sangue frio, triturando-lhe a carne (está vil e inútil matéria que não passa de pó). Aí, lembrou-se do versículo: “Viste do pó, és pó e ao pó retornarás”, e sentiu que só a sua alma suportaria toda aquela dor. Aquele sofrimento, que ora a carne, o corpo, a matéria sentia. Não ela. Ela não era nada disso. Nunca precisou dessa coisa efêmera. As suas fomes lhe ensinaram a valorizar a alma. Sim, era feita de espírito, de alma. Assim, ela se acostumara a Ver e Viver a sua vida. Alimentando-se sempre de oração, fora feita para eternidade e não de efemeridade.
         Vevê ainda aos olhos do Sr. Zemil, parecia se revestisse de uma lividez transcendental, que ele se assustara em vê-la daquele jeito, tão transfigurada. Ela estava pálida, tão branca, tão transparente em seu vestido branco-neve-nuvem, quando caminhava em direção à porta, que ia como se a estivesse levitando tão suave, tão leve como uma pluma-pena. Mas ela não era pena, tinha pena, estava repleta de pena mesmo era do seu patrão, do seu pai e todos os homens.

         Bem que, Zemil, quis lhe falar algo, mas ela não tinha mais nada a que ouvir dele. Ela não tinha o direito de tê-lo como patrão, nem como amigo, nem como irmão e nem tampouco como pai, como aquele que, às vezes, lhe dera conselho. Não, não nascera para ter esses elos, essas relações tão comuns para uma existência humana e tão insólita para com ela.
         Desceu as escadas e, quando chegou à praça, a qual ficava ao lado do prédio, no qual trabalhava, ouviu o soar suave do sino da Igreja matriz. Estava começando a bater as doze badaladas do meio-dia. O som, perto-distante, do sino fazia lembrar uma canção que ela gostava sempre de cantar quando estava a caminhar. Então, ela, seguiu a entoar o seu hino e, muitas vozes a lhes acompanhar, como sendo uma miríade de anjos.

         A rua, ao meio-dia, não havia muitas pessoas, mas as poucas que estavam por ali, sentadas na praça, ficaram encantadas, extasiadas com o que viam e não acreditavam.
         Era a moça de cabelos e vestido branco longos que cantava um hino muito bonito, porém o seu canto ecoava juntamente com muitas outras vozes que vinham do além. Eram como vozes de anjos, milhares delas, com uma música acompanhada pelo sino e, também, algumas trombetas. Ninguém conseguia ver, - mas não precisava - as pessoas estavam a se deleitar da música, do hino que era cantado belamente por Veraluz.
         Isso não durou não mais que três minutos, o tempo suficiente para uma música entrar no coração e na alma de um ser e lhe fazer sentir a felicidade da paz, da solidariedade e do amor.  Quando a canção encerrou, a cantora já estava a transpor a nuvem, a única nuvem que passava naquele céu azul, num sol de 34oC.
         Sr. Zemil, que havia escutado o alvoroço do povo lá embaixo, resolveu sair no hall do prédio, para se certificar do que realmente estava acontecendo. Lá chegando, não acreditou no que viu. A poucos metros de onde estava, viu uma mulher sendo elevada para os altos por uma miríade de anjos luzidios, celestialmente.
         Profundamente, contrito, assistia à cena com lágrimas nos olhos. Chorou como todos os homens choram: escondido. Mesmo assim, ao chegar à casa, a sua esposa inquiriu-lhe sobre os olhos inchados e ele contou-lhe o ocorrido presente, menos o pretérito.

         Após esse dia, Zemil tomou uma decisão extrema na sua vida. Abandonou o oficio de Dentista e foi ser pastor na mesma Igreja na qual Vevê sempre frequentava. E o seu mais belo testemunho, o qual, o fez retornar à Igreja não a outra, mas esta; foi o de ter conhecido um anjo. Um belíssimo anjo.

         E, assim, todas as vezes que abre o seu sermão, é fazendo referência a esse mesmo mirífico anjo de luz celestial. Porém, nunca ousou em dizer que o anjo se chamava VERALUZ.